sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Mentes que brilham (Parte 1)


Logo que se iniciou a campanha eleitoral, tive uma ideia luminosa: ler as propostas dos candidatos a Presidente, resumi-las e compará-las. Desisti do projeto quando vi que havia textos de quase 80 páginas, a maioria das quais não dizia nada.
Claro que a ideia não era tão ruim, a falha estava na execução. Embora a sabedoria popular indique que remédios amargos devem ser tomados de uma vez só, concluí que melhor seria abordar um tema por vez. E o primeiro foi escolhido por conta da boa repercussão do texto “Com mérito”: cotas étnicas.
Embora o assunto desperte polêmica, a pesquisa de opinião mais recente que encontrei já é antiga, de janeiro de 2013. Segundo o IBOPE, naquele momento 64% dos brasileiros aprovavam a existência das cotas para negros nas universidades públicas.
Assim, tendo em mente o resultado dessa pesquisa, vamos às propostas dos presidenciáveis. Citá-los-ei exatamente na ordem em que aparecem no sítio do TSE, onde as propostas de governo estão disponíveis para leitura.
O candidato que pretende liderar a oposição preparou um documento de 76 páginas. De fato, ele tem muitas ideias. Ainda bem que existe o comando “localizar”. Fui direto para a página 16, onde está o que nos interessa:
Defesa e manutenção das ações afirmativas de inclusão social, 
inclusive cotas, em razão de raça.
A candidata à reeleição escreveu menos no geral e mais sobre cotas. Tanto divulgando o que afirma já ter feito como o que ainda pretende fazer. Vamos focar nas propostas para o futuro, que estão na página 21:
Temos o desafio de tornar realidade a Lei de Cotas no serviço público federal, 
sancionada em junho de 2014, garantindo-lhe a mesma efetividade já 
alcançada pela lei de cotas nas universidades públicas.
Segue o jogo. Assumiremos que a candidata de última hora manterá a proposta da chapa original. Ei-la:
Reforçar políticas de igualdade racial, inclusive a manutenção das cotas, como parte de um processo de restauração do equilíbrio aos desequilíbrios históricos contra as minorias.
Na mesma linha, o pessoal do “contra burguês, vote 16”:
O PSTU defende uma política de combate ao racismo e de compensação ao povo negro, como a ampliação do sistema de cotas nas universidades e serviços públicos.
E, para finalizar, o enigmático posicionamento do candidato do Partido da Causa Operária, o popularíssimo PCO:
“Não será através de políticas e ações afirmativas que a população negra acabará com a opressão racial, mas somente por meio da luta política capaz de destruir o estado burguês no processo revolucionário pela construção do socialismo.”
Não localizei citação às cotas ou ações afirmativas nas propostas divulgadas pelos outros candidatos. Talvez eles tenham tratado do assunto indiretamente, ou sem usar as palavras-chave que selecionei. Nesse caso, duvido que tenham adotado posições claras o bastante para que pudéssemos analisar. Logo, ficam fora deste artigo.
Falando em clareza, vamos tentar decifrar o intrincado pensamento do PCO. Políticas em benefício dos menos favorecidos seriam métodos de controle das massas. O oprimido, ao ser contemplado com alguma benesse, se sente menos oprimido. Sua insatisfação e revolta diminuem, ante a possibilidade de inclusão social. Se o sistema está trabalhando em favor dele, por que derrubá-lo? O ideal, portanto, é negar as ações afirmativas, perpetuar a exclusão, até que não reste alternativa aos excluídos senão o levante revolucionário. Tomar o Estado. Mas... para quê? Para adotar políticas de combate à opressão e à desigualdade, imagino. E não seriam justamente essas as motivações das ações afirmativas? Parece que atingimos uma referência circular. Confuso, não é? Talvez defender teses que demandam um raciocínio tão labiríntico seja um dos motivos pelos quais eles não conseguem muitos votos.
As outras propostas parecem semelhantes, todas favoráveis às cotas. Mas se prestarmos atenção às escolhas das palavras, perceberemos sutis diferenças.
O único partido a afirmar categoricamente que irá ampliar o sistema é o PSTU. Curiosamente, sua justificativa é a mesma adotada pelo PSB para manter as cotas, compensação histórica. Tenho dificuldade para aceitar essa “compensação”. OK, eu, o Estado, chancelei o tráfico humano, a escravidão e a tortura dos seus ascendentes. Se agora deixarmos vocês furarem umas filas de vez em quando, podem nos perdoar?
Justificativas a parte, vamos deixar o PSTU para trás (onde eles ficam mesmo ao fim das eleições) e pensar em duas palavras utilizadas tanto pelo PSB, como pelo PSDB: manutenção e inclusive.
Manter significa deixar como está. Logo, esses partidos, embora na oposição, avaliam que neste particular os caminhos adotados pelo governo são satisfatórios e devem ser mantidos, inclusive em relação às cotas raciais. Para mim soou como “Tudo bem, vamos deixar assim, deixamos até essas cotas em razão de (?) raça.” Ah, se fosse eu o redator, pelo menos substituiria “raça” por etnia.
Vamos relevar essa pequena imprecisão semântica, pois temos palavrinhas reveladoras também na proposta da candidata oficial. Se os oposicionistas pisam em ovos para concordar com qualquer coisa que o atual governo tenha feito, quem está no governo precisa tomar cuidado a cada proposta que apresenta. Afinal, se está falando que vai fazer agora, por que não fez antes?
Assim, considerando as particularidades inerentes à construção de cada discurso, e levando em conta apenas o que se escreveu sobre as cotas, parece que o PT contratou redatores melhores. A Presidente não apresenta uma simples proposta, se declara diante de um desafio, que é de reproduzir a efetividade, ou seja, o sucesso, que afirma já ter alcançado em outra iniciativa semelhante. Já fizemos nas universidades, e agora faremos no serviço público, mas não pensem que será fácil. Se fosse fácil, já teríamos feito. Será um desafio.
No fim das contas, seja por realmente acreditarem na proposta, ou por não quererem desagradar mais de 60% do eleitorado, tudo indica que, qualquer que seja o candidato vencedor, não teremos o fim das cotas étnicas. E nem considero isso um problema, afinal, o mínimo esperado numa democracia é que as decisões dos governantes estejam de acordo com os anseios da população.
Qual é então a face riscada da moeda? O fato de nenhum candidato parecer disposto a fomentar um debate sobre o tema, o que poderia levar ao seu aperfeiçoamento – por exemplo, com cotas sociais, cotas mistas, ou ações afirmativas diferentes de simples cotas. Se o povo está aceitando bem pão seco, para que se dar ao trabalho de fabricar manteiga?


Nenhum comentário:

Postar um comentário