sábado, 6 de dezembro de 2014

Os mais espertos da sala


As eleições passaram, mas a guerra continua. E a batalha que ocupou os noticiários na última semana é a proposta de “ajuste” da meta fiscal.
Resumindo o imbróglio: o Poder Executivo estabelece, a cada ano, metas de arrecadação e despesas para o exercício financeiro seguinte, por meio da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). O governo não pretende, em 2014, cumprir as metas que havia proposto na LDO. Assim, enviou ao Congresso (em novembro) um projeto de lei para modificar o sistema de cálculo da meta, incluindo como passíveis de abatimento no cálculo do superávit primário investimentos e desonerações que não estavam previstos na lei original.
Além da inusitada pretensão de estipular a meta depois de saber o que já foi cumprido, a tramitação do projeto nos reservou outras surpresas, incluindo a apresentação de um Decreto que aumenta a dotação parlamentar para emendas, desde que aprovada a mudança na LDO, e uma grande confusão entre grupos que protestavam no Plenário e os seguranças do Congresso.
Temos, assim, quatro temas em um: a expulsão dos manifestantes, a (in) conveniência do envio desse projeto no penúltimo mês do ano, o critério de “negociação” adotado pelo Governo, e, por fim, o mais espinhoso: que é “superávit primário”, e devemos mesmo nos preocupar com ele?
Sobre a expulsão: considero aceitável restringir o acesso de pessoas que realmente estejam atrapalhando, ofendendo, tentando obstruir no grito. Agora, isso seria em caráter de exceção. A regra é que o povo tem o direito de ocupar o Congresso. Mesmo se o “povo” no caso for a claque de um partido, de um sindicato, de uma ONG, ou um bando de viúvas da ditadura. Ser militante de uma causa, ainda que estúpida, não é hipótese de exclusão de direitos políticos. Botar todo mundo pra fora com truculência e depois votar com portas fechadas são atitudes que não combinam com nossas pretensões de sermos mais democráticos.
A segunda questão é quanto à conveniência de se alterar a LDO depois que ela foi aprovada. Não é a primeira vez que isso acontece, já foi feito por Lula, pela própria Dilma, até por FHC.
A história mostra que projeções econômicas se revelam equivocadas com frequência, às vezes por fatores imprevisíveis. Outras, porque o que chamaram de projeção era chute mesmo. Em todo caso, não concordo que as metas fixadas na LDO devam ser imutáveis. O ideal é que sejam mantidas, mas devem ser admitidos ajustes, se devidamente motivados. Difícil de aceitar é que a mudança ocorra no penúltimo mês do ano, com o exercício praticamente encerrado, para fazer conta de chegada. Denota, no mínimo, uma tremenda falha de planejamento.
A questão mais divertida é a terceira: dezessete dias depois de propor a alteração da LDO, o Poder Executivo enviou um Decreto liberando R$ 444.000.000,00 extras para emendas parlamentares, desde que aprovada a nova LDO. Quando vi isso, lembrei do seguinte trecho do livro “Brasil em Alta”, do jornalista norte-americano Larry Rohter:
“Uma coisa é um presidente (...) apoiar um projeto de um deputado de outro partido, em troca do seu voto (...): esse tipo de fisiologismo acontece em todas as democracias. Porém, no Brasil (...), também adotam práticas tais como (...) a compra descarada de votos.”
Assim parece até que evoluímos! Como estamos conseguindo combater um pouquinho a corrupção, as negociações do Executivo com o Legislativo precisam se tornar mais refinadas. Em vez da “compra descarada” de votos, troca de favores: vota esse que é bom pra mim que eu mando um bom pra você. Prática que, segundo Rohter, é comum em todas as “democracias”. Por que seríamos diferentes, se podemos ser iguais? Essa “venda casada” no apagar das luzes de 2014, portanto, tende a ser apenas uma pequena amostra do que pode acontecer daqui pra frente, na relação de um Executivo que parece forçado (e conformado) a ser “conciliador” com um Legislativo fragmentado e fisiológico.
Finalmente, a questão de fundo. O que é “superávit primário”? É o resultado do confronto das receitas não financeiras do governo (basicamente, impostos) e suas despesas não financeiras. Fazendo uma analogia com a vida cotidiana de um trabalhador, seria a sobra do salário depois de adimplidas as despesas básicas: saúde, alimentação, educação, moradia.
Numa análise superficial, parece lógico que é melhor sobrar do que faltar, e que o “superávit” seria desejável. A questão, porém, é muito mais complexa do que isso.
O objetivo de perseguir o “superávit primário” é o pagamento da dívida pública. Há mais de uma década, os planos orçamentários do governo devem ajustar as despesas à expectativa de arrecadação, de modo que sejam geradas diferenças positivas, os superávits, para honrar os encargos da dívida.
Para refletirmos sobre isso, vamos imaginar que somos chefes de uma grande família. E que herdamos dívidas. Por isso, precisamos controlar nossos gastos, economizar o máximo possível para amortizar essas dívidas. Porém, a renda que auferimos é limitada, os juros, altos, e as necessidades da família, muitas e crescentes. Vamos levando a vida assim até que um dia precisamos fazer uma escolha: alimentar os filhos ou pagar os juros do cartão de crédito.
Acredito que a maior parte dos pais não teria dúvida sobre o que escolher. E a escolha dos nossos sucessivos governos tem sido sempre, em primeiro lugar, pagar os juros do cartão de crédito.
“Ora, colocando assim, induz o leitor a pensar que é uma decisão errada. Mas quem deve tem que pagar. Por que ficou devendo, em primeiro lugar? Se não pagar agora, pode ficar pior depois. Tem que fazer sacrifícios, honrar os compromissos. Plantar para depois colher! Aliás, onde foi gasto o resto do dinheiro?”

Colocações pertinentes, difíceis de serem repercutidas na grandes mídia. Dá mais ibope mostrar um brucutu escorraçando uma velhinha raivosa. Desconfio, também, que quem comanda o espetáculo não tenha muito interesse em atiçar o povo (agora estamos falando do povo mesmo) com essas perguntas. Porque quem começar a procurar as respostas vai descobrir que tem muita gente se sacrificando há tempo demais, plantando para outros colherem. Que boa parte desses “compromissos” envolve interesses só confessados sob a benção das delações premiadas. Que existem dívidas maiores a serem pagas, algumas acumulando juros desde a chegada de Cabral. Mas essas continuarão esperando pelos trocados que sobrarem depois da fatia dos banqueiros; afinal, a lei manda que eles sejam sempre os primeiros da fila.



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