Em nossas breves e espaçadas experiências quase democráticas,
já tivemos impeachments, renúncias, suicídios, mortes mal explicadas, poucos
avanços e múltiplos recuos. Tivemos governantes depostos sob a mira de fuzis,
e outros que nem precisaram ser derrubados, pois cederam ao próprio
desequilíbrio. Tivemos um presidente que nunca foi, substituído por outro que,
sem ter sido eleito sequer para um mandato, ficou no centro do poder por três
décadas. Já tivemos quase de tudo, e ainda estamos por aqui.
Para quem já passou por tanto, não é uma mera votação com
tons circenses e espetaculosos num domingo que ameaça a democracia. Antes, o
fato de que o futuro de um governante será decidido num balcão de negócios,
onde a virtude escasseia nos dois pólos, isto sim já é a pior das derrotas.
Um provável impeachment não será a morte da democracia, como alardeiam os defensores do atual governo, porque o que ainda
não nasceu não pode morrer. Tampouco será o dia em que “tomaremos nosso país de volta dos vermelhos”, devaneio dos que marcham ao largo do pato holandês pirateado
pela FIESP, pois não se pode recuperar o que nunca foi seu, nem tomar de volta de
quem também jamais possuiu coisa alguma, além de uma efêmera ilusão de poder.
O que não significa, em absoluto, que não tenhamos nada a
perder. Houve pequenas conquistas na nossa quase democracia, conquistas que agora
se esvaem a cada dia, a cada ato de intolerância, a cada golpe baixo, a cada ferimento
que sofrem as instituições.
E, para marcar tanta derrocada, eis que ergueram um muro
na frente do Congresso, para que cada torcida fique de um lado, cada um tão
cheio de certezas, cada um tão ávido por sentir raiva de quem
está do outro lado.
E eis que ergueram esse muro, para tornar ainda mais
patética e esquizofrênica a disputa pelo que resta da pilhagem, travestida de
processo constitucional, luta pela democracia, embate contra a corrupção, luta
de classes, ou o título pomposo mais ao gosto do freguês.
E ali estará, até domingo pelo menos, esse muro, para
materializar a divisão entre os “vermelhos” e os “verde-amarelos”, e para
mascarar as diferenças que realmente importam: entre os que estarão no gramado e
os que estarão nos plenários, entre os que conduzem e os que são conduzidos.
Entre os que tem poder de verdade e os que não tem nem nunca tiveram nada, além
do direito de se indignar (nem sempre) e de sonhar.
E cada pessoa de cada lado do muro acredita de todo coração
que está do lado certo, e de que vai vencer.
Não teriam pensado o mesmo os jovens que, há mais de
vinte anos, saíram às ruas para derrubar outro presidente? Estariam hoje esses
jovens, não mais tão jovens, pensando em quantos presidentes precisarão ser
derrubados?
Quem vencerá no domingo não será a multidão de bandeira
vermelha, após 13 anos menos famintos, mas ainda sem teto, sem terra, sem
país. Nem a multidão de verde-amarelo, que levanta faixas contra a corrupção ao
lado de Eduardo Cunha, e quer acreditar num novo país com os
mesmos atores do capítulo anterior.
O passado se repete como farsa, a caminho da tragédia.
Mas talvez ainda haja tempo para escapar, se percebermos, apenas por um instante,
o quanto estamos ferrados. Pena que ninguém se arrisca a levantar a cabeça,
ocupados demais em discutir qual lado tem mais acusados de corrupção, quem terá
sido mais incompetente, em que cenário nosso futuro será menos calamitoso.
Gostaria de acreditar, como os vermelhos, que vale a pena
lutar pela ressurreição de um governo que não acreditou no próprio discurso,
que trocou a esperança pelo cinismo, que se aliou ao que havia de mais
retrógrado na política brasileira, e agora está sendo chamado a pagar o preço
das suas escolhas. Gostaria ainda mais de crer, como os verde-amarelos, que o
iminente fim desse governo iniciará uma nova era, com elevados padrões éticos,
mas ainda que quisesse ser tão ingênuo, eis que vem Paulo Maluf como bastião da
integridade, mudando de lado na última hora, para que nem os mais fronteiriços
possam crer que um amanhã melhor está para chegar.
Sempre haverá, porém, o dia depois de amanhã. Quando a
poeira baixar, quando o muro for desmontado, quando a raiva se tornar uma
lembrança distante, quando os diferentes voltarem a ser percebidos como iguais,
poderemos reconstruir.
Quanto tempo isso vai demorar, o quanto vamos sangrar até
lá, quem poderá saber? Mas se há algo pelo qual vale a pena lutar a partir da
segunda-feira, é para nos livrarmos o quanto antes dos escombros dos muros que
hoje nos dividem.
P.S.: Para que os viciados em pensamento binário possam
me colocar de um dos lados do estúpido muro, e xingar a vontade, complemento
que, se deputado fosse, votaria contra esse atual pedido de impeachment, que
para ter o mínimo de seriedade precisaria no mínimo incluir o vice-presidente,
já que PT e PMDB foram cúmplices tanto nas “pedaladas” quanto no suposto uso de
dinheiro de propina na campanha.
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