“Je suis Charlie” é o
primeiro candidato a meme do verão. Não sou fã de memes, mas reconheço que
nesse caso pelo menos a motivação é nobre: solidariedade aos mortos no ataque à
revista francesa e defesa da liberdade de expressão.
Mas, como é bonito ser do
contra, logo surgiu a turma do “Je ne suis pas Charlie”. Claro que os
“não-Charlie” não apoiam o ataque, como poderiam? Estão apenas tentando
“ampliar o debate”, compreender as “motivações”. O humor do “Charlie Hebdo”
seria de mau gosto. Ofenderia os islâmicos. Há um contexto de xenofobia e
islamofobia na sociedade francesa, que ajuda a incendiar os ânimos. E de
repente, antes que os cadáveres esfriem, nos deparamos com mesas-redondas sobre
os limites da liberdade de expressão.
Até concordo que esse tema
tenha sua importância, em outro contexto. No caso do ataque, a questão não é
essa. E não é essa simplesmente porque não há cenário possível em que uma
sátira mereça ser respondida com rajadas de metralhadoras. Se chegamos ao ponto
em que isso acontece, e ainda estamos procurando justificativas, há algo de
profundamente errado com o mundo. E, mesmo admitindo que todos possam ter sua
parcela de culpa, vou correr o risco de afirmar que os mais problemáticos são
os caras que disparam metralhadoras ou amarram bombas nos próprios corpos.
Num outro mundo, talvez
essa tragédia, mais essa, nos levasse a refletir sobre até que ponto as pessoas
podem chegar para defender os mitos e fábulas em que acreditam. No nosso mundo
essa pergunta é tola, já sabemos que não há limite. Matamos e morremos por nada
há séculos. Se podemos matar e morrer por Deus, Alá, Vishnu, Xenu ou Rama
Kushna, melhor ainda.
Queria poder escrever que
isso é coisa do passado, que cruzadas e inquisições pertencem aos livros de
história. Mas as guerras do século XXI são reais, tão reais que pertencem à
Internet. Para encontrar uma, basta digitar os nomes de quaisquer dois credos no google e seguir os gritos de dor e as poças de sangue. Muçulmanos
x cristãos, judeus x muçulmanos, xiitas x sunitas, tem conflito envolvendo até
os budistas.
Parece difícil relacionar
qualquer um desses conflitos com a realidade brasileira. Estamos a milhares de
quilômetros das bombas, e tenho (quase) certeza de que as pessoas
religiosas que conheço nunca pensaram em metralhar alguém, ou em
promover limpezas étnicas. Um dos muitos efeitos nocivos da banalização da
violência, porém, é nublar nossa percepção. Há outros meios de prejudicar as
pessoas além de atirar nelas ou explodir suas casas. E podemos sim encontrar
algumas atitudes potencialmente nocivas por aqui, motivadas por uma lógica bem
semelhante a que move qualquer guerra religiosa.
Para desenvolver o
raciocínio, precisamos primeiro entender o conceito de externalidade. Academicamente
falando, externalidades são os efeitos de uma decisão sobre terceiros que não
participaram dela. No popular, as consequências dos nossos atos na vida dos
outros. Ambientalistas gostam muito de usar esse conceito para falar sobre
banhos demorados e SUVs queimando combustível demais.
O segundo ponto é bem mais
difícil: devemos aceitar que existe uma chance de que as coisas em que
acreditamos não sejam reais. Ou, pelo menos, que o modo como agimos, em função
das nossas crenças, pode não estar correto, pode não ser exatamente aquilo que o
deus que seguimos gostaria que fizéssemos. Talvez fique mais fácil admitir isso
se nos lembrarmos, todos os dias, que aqueles que metralharam o Charlie Hebdo
acreditavam estar fazendo o bem. Que o reverendo Jim Jones, pregando sabe-se lá
o quê, convenceu mais de novecentas pessoas a se suicidarem. Que Hitler uniu a
população alemã num projeto de genocídio e dominação mundial. Assim, basta um
pouco de humildade para reconhecer que não somos mais sábios ou iluminados do
que os outros seres humanos, e podemos ser iludidos do mesmo modo.
Ora, a partir do momento
em que somos capazes de aceitar que não sabemos a “verdade”, podemos aplicar o
conceito de externalidade para julgar nossos próprios atos. Só por via das dúvidas. Inclusive, e
principalmente, aqueles que costumamos praticar no “automático”, pela sua aparente
conformidade com as nossas crenças. Reparem que não estou dizendo para ninguém
abandonar a própria fé. Nem tenho como falar de divindades alheias, quando meus
deuses são os Vingadores e os cavaleiros Jedi. O ponto é que, apesar disso, não
saio por aí desafiando as pessoas para duelos com sabres de luz.
Enfim, o que pretendo
dizer é: a menos que uma entidade mitológica fale diretamente com você, único
meio que poderia lhe dar absoluta certeza de que está fazendo a vontade Dele (a
menos que você seja um esquizofrênico delirante, porque aí não poderia confiar
nem nos seus olhos e ouvidos), duvide. Conteste. Pense. Analise as possíveis
consequências das suas condutas.
Porque, por mais estranho
que isso possa parecer, lembre-se: há
quem acredite estar fazendo o bem ao matar pessoas. Parece óbvio que isso é
o mal, e o que “nós” fazemos é o bem, não parece? Atirar no cartunista é ruim,
doar para as crianças carentes é bom. Mas e quando o nexo causal não é tão
evidente como tiro = morte?
E quando, por exemplo, precisamos
decidir entre apoiar ou não uma campanha de distribuição de preservativos e
educação sexual? O governo e os médicos dizem que a campanha salvará vidas. O
padre, o pastor, dizem que incentivará a promiscuidade. Que o melhor antídoto é
a castidade (sim, eles ainda dizem isso, doze de janeiro de 2015. Que a
história registre). E quando pais tentam impedir que seus filhos recebam
transfusões de sangue, porque a bíblia ordenaria “não comer o sangue”? E
quando, novamente para evitar a “disseminação da promiscuidade”, católicos e evangélicos
se unem para boicotar a vacinação contra o HPV, vírus que matou quase cinco mil
mulheres no Brasil só em 2013?
Cabe o registro de que
essas posições medievais já são fortemente combatidas por muitos fiéis e líderes religiosos, dentro das próprias
igrejas. Aleluia, o século XV um dia vai acabar, tenho fé.
Poderíamos prosseguir com
questões polêmicas, como aborto e pesquisa com células-tronco. Mas essa pequena
lista já é suficiente para perceber que existem outras decisões de vida ou
morte, além de apertar ou não gatilhos. Podemos assumir essas decisões, ou
deixar que outros as tomem por nós.
Só que, eis a grande
armadilha: nos abstermos das decisões já é uma decisão. E, do alto das minhas
descrenças, creio que, se há ou um dia houve um Deus, Ele não ficaria nada feliz
ao ver suas criações abrindo mão do dom mais precioso que concedeu aos
seres humanos: o livre arbítrio. Somos livres, até para escolhermos abrir mão
da nossa liberdade. Mas, se há ou um dia houve um Deus, será mesmo que Ele
esperaria tão pouco de suas amadas criações?
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