Do ponto de vista
etimológico, a palavra “democracia”, formada pela junção das palavras gregas
demo (povo) e kracia (governo) significa governo
do povo. Embora essa definição esteja bem distante do uso atual da palavra
democracia (sobre isto, recomendo fortemente a leitura deste texto), a Constituição do Brasil ainda se
ancora no sentido puro:
“Art. 1º, Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o
exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição.”
O texto constitucional discrimina, portanto,
duas formas possíveis de exercício da democracia: por meio de representantes
eleitos (democracia indireta, ou representativa) e diretamente (democracia
direta, ao estilo do que ocorria na pólis para os cidadãos livres).
Os modos de exercício da democracia são
descritos no artigo 14:
“Art. 14. A soberania popular será exercida pelo
sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e,
nos termos da lei, mediante:
I - plebiscito;
II - referendo;
III - iniciativa
popular.”
Logo, os instrumentos de
democracia direta são o plebiscito, o referendo, e a iniciativa popular. No
plebiscito, a população é convocada para decidir sobre um determinado tema; no
referendo, para aprovar ou reprovar alguma decisão já tomada pelo governo; e a
iniciativa popular é a possibilidade do povo apresentar projetos de lei.
Nos últimos vinte anos,
tivemos: um plebiscito, em 1993, sobre Monarquia/República e
Parlamentarismo/Presidencialismo; um referendo, em 2005, a respeito do Estatuto do Desarmamento.
Em relação aos projetos de lei de iniciativa popular, desde que foi promulgada
a Constituição tivemos apenas quatro que
se converteram em lei, sendo o
mais recente o da “ficha limpa”.
Não obstante a
importância e potencial dos institutos de democracia direta presentes na
Constituição, estes números demonstram que o modelo brasileiro é,
predominantemente, indireto. A soberania popular seria exercida pelo voto,
cabendo aos representantes eleitos agir em nome e na defesa dos melhores interesses
do povo que os elegeu. Assim, a efetiva existência da democracia demanda que as
ações políticas dos representantes eleitos tenham a máxima similaridade
possível com os efetivos anseios dos representados.
A pergunta, portanto,
passa a ser: será que as ações dos nossos representantes políticos estão em
consonância com os anseios populares? Tudo leva a crer que a melhor resposta
seria não:
Atentemos aos seguintes
dados da pesquisa do IBOPE: numa avaliação de 0 a 10, senadores, deputados e vereadores receberam notas médias
abaixo de 4. Foram, portanto, reprovados. Conclui-se, logicamente, que essa
insatisfação deveria se refletir nas eleições, com a crescente renovação dos
representantes. Pode ser que isto aconteça agora, em 2014 (particularmente,
duvido). O fato é que não tem acontecido: os índices de renovação no Congresso
Nacional, desde a década de 90, estão sempre por volta de 40%. Há que se
considerar, ainda, que muitas das mudanças ocorrem por opção: aposentadorias,
candidaturas para outros cargos, nomeações para secretariados e ministérios,
etc. .
Ou seja, embora o povo
avalie negativamente seus representantes, com notas abaixo de 4, tende a
reconduzir a maioria deles (por volta de 60%, no mínimo) para os seus cargos.
Paranoia? Esquizofrenia?
Vimos, no artigo
anterior, que nas eleições majoritárias há forte correlação entre a avaliação
do governo e o futuro político do mandatário. A reeleição de um governante com
índice de aprovação inferior a 40% é considerada praticamente impossível. No
entanto, nas eleições proporcionais, mesmo com uma avaliação inferior a 40% no
desempenho dos representantes, mesmo com um altíssimo grau de desconfiança na
classe política, com a clara percepção de que estes representantes não estão
agindo nos legítimos interesses do povo, a maioria deles continua se
reelegendo, legislatura após legislatura. Ou, pior, galgando a cargos mais
altos.
Essas constatações
produzem, aparentemente, um paradoxo. Os representantes não estão atendendo aos
anseios populares, logo, não estariam concretizando a democracia. Por outro
lado, seus mandatos são legais, conferidos mediante eleições periódicas. A
soberania popular estaria sendo exercida normalmente, por meio do sufrágio. Há ou não democracia, afinal? Como resolvemos esse enigma?
Bem, vamos escrever as
conclusões acima de outro modo: os atos dos representantes são legais, pois
foram respeitadas as formalidades para que ali eles estivessem. Mas ilegítimos,
pois não correspondem ao que eles deveriam fazer, segundo
a Constituição: a vontade do povo.
E como nasce, e se
perpetua, essa ilegitimidade? A partir de uma falha basilar do nosso sistema
eleitoral, que desrespeita um princípio fundamental para aproximar um sistema
representativo de uma democracia: o direito de qualquer cidadão votar e ser votado.
Hoje, felizmente, a
maior parte dos brasileiros tem o direito de votar. Não há mais critérios
étnicos, sociais ou de gênero para excluir de alguns nacionais esse básico
direito de cidadania. Mas para ser votado é preciso mais do que a “simples”
cidadania. Este exige, além dos requisitos formais previstos na Constituição e
nas leis, um outro elemento, implícito, mas absolutamente real e determinante:
o poder econômico.
No próximo texto,
demonstraremos a verdade contida nessa afirmativa e os motivos pelos quais
nosso sistema eleitoral-representativo conduz, de fato, não a uma democracia,
ainda que indireta, mas a uma plutocracia, palavra que os constituintes devem
ter achado um tanto inadequada para constar no texto da Lei Maior.