quinta-feira, 19 de junho de 2014

Um mundo perfeito


De toda a enxurrada de argumentos que ainda incensam a agora já minguante onda de revolta com a realização da Copa do Mundo (digo, Copa do Mundo da FIFA, avisaram que é obrigatório citar a FIFA), me deparei com um que mereceu atenção especial: de que, ao prestigiá-la, estaríamos sendo coniventes com os desmandos da entidade-mor do futebol e com todos os possíveis casos de corrupção relacionados à organização do torneio. Pior, considerando que inclusive morreram operários nas obras da copa, a cada jogo que assistíssemos, estaríamos passando a mensagem de que não nos importamos com gotas de sangue misturadas ao concreto dos nossos circos.
Numa primeira análise, o argumento parece bem difícil de ser refutado. E não é válido apenas para o caso da Copa do Mundo (da FIFA!). Se houvesse boicotes aos produtos de todas as empresas envolvidas com ilícitos, elas acabariam quebrando. Logo, deixar de consumir seria o meio mais eficaz de protesto.
Como o caminho parece cristalinamente adequado, vamos tentar seguir por ele. Porém, colocar em prática essa teoria, com justiça, só será possível se os nossos julgamentos morais forem infalíveis. Melhor explicando: precisamos ter certeza de que não agiremos contra partes inocentes, com base em conclusões apressadas ou equivocadas. Aliás, falando em base, logo nos lembramos de um caso famoso (olha o link!) que demonstra melhor do que qualquer filosofia os perigos de adotar atitudes extremas confiando em boatos, fontes secundárias, ou no senso comum.
Isso apenas ilustra um fato que pode ser um choque para a maioria das pessoas: nem sempre estamos certos sobre tudo. Assim, é impossível que sejamos absolutamente justos. Claro que podemos colocar os pés no pragmatismo, ou quem sabe no maquiavelismo, e assumir que mesmo não estando sempre certos, estaremos na maioria das vezes. Afinal, somos espertos e bem informados. Ainda que cometamos um erro ou outro, na média, cortaremos mais ervas daninhas do que raízes saudáveis.
Satisfeitos com essa vantagem matemática, poderíamos iniciar uma cruzada de absoluta honestidade ideológica. Um bom primeiro passo seria uma radical mudança nos padrões de consumo. Afinal, a grande maioria, se não todas as grandes empresas, estão constantemente envolvidas em denúncias de corrupção, ou, no mínimo, respondendo a processos sobre infrações trabalhistas e sonegação fiscal. Isso para não falar das violações aos direitos dos consumidores. A mesmíssima lógica que fundamenta a natimorta proposta de boicote à Copa do Mundo (da FIFA) deveria ser aplicada às empresas de telecomunicações, cujo processo de privatização foi alvo de tantas ou mais denúncias de irregularidades do que as obras do torneio de futebol. Também não poderíamos utilizar o metrô em São Paulo, ou os ônibus no Rio de Janeiro. E de modo algum pagar impostos, pois “todo mundo sabe” que grande parte do que pagamos acaba sendo desviado e financiando a corrupção.
Pode até ser que alguns poucos reúnam a fibra moral e capacidade de auto-sacrifício suficiente para agir dessa maneira. O que seria fútil, pois se afastariam de tal maneira da sociedade que não teriam a menor possibilidade de transformá-la. Na prática, a tentativa de impor padrões como esses acaba constrangendo e afastando as pessoas. E o objetivo do discurso deve ser esse mesmo. “Reclama que o estádio foi superfaturado, mas assistiu ao jogo? Não pode reclamar!” “Falou mal da Guerra do Iraque, mas foi passear na Disney? Hipócrita!”
A verdade é que precisamos viver neste mundo enquanto tentamos mudá-lo. Até porque não temos outro. E não é um mundo fácil: é complexo, contraditório, injusto, imperfeito. Assim como nós. Mas o fato de não podermos ser todos Gandhis ou Mandelas não significa que precisamos nos resignar a ser Homer Simpson. Claro que devemos evitar as grandes incoerências. Ser honestos, antes de reclamar da corrupção. Juntar nosso lixo, antes de reclamar das ruas sujas. Enfim, lutar as pequenas batalhas. Mas sem a pretensão de sermos os juízes e guardiões da moral humana. Se ao final de cada dia tivermos sido autênticos o bastante para passar no nosso próprio julgamento, e sentirmos que ainda há coragem para lutar no dia seguinte, já poderemos nos orgulhar. Não por termos saído da escuridão, mas por insistirmos em brilhar, mesmo quando mergulhados nela. 



sexta-feira, 6 de junho de 2014

O último a saber


O brasileiro médio tem um prazer especial em achincalhar seu próprio país. Nosso já tradicional complexo de vira-latas recentemente foi acrescido de um inusitado gosto pela autoflagelação. E essa autêntica mania nacional foi impulsionada pelo trágico, lamentável, abominável fato de que estamos prestes a sediar uma Copa do Mundo.
E os argumentos anti-copa são bem convincentes:
1. Muitas obras prometidas não ficaram prontas;
2. O que foi feito, atrasou, e custou bem mais do que o planejado;
3. Temos coisas mais importantes para investir do que em estádios de futebol;
4. Não temos estrutura decente para receber tantos turistas. A mobilidade urbana é trágica, nossos aeroportos insuficientes, a segurança pública, melhor nem comentar.
Tudo isso é verdade. Mas nada disso é “culpa” da Copa do Mundo, tampouco há a mínima lógica em imaginar que a não realização da copa nos traria algum benefício.
Vamos enfrentar logo de cara um argumento que parece incontestável: o dinheiro gasto na Copa poderia ter sido aplicado na saúde e na educação.
Poderia mesmo. Mas, quanto será que se investe na saúde e educação? Aliás, será que algum ativista anti-copa já leu alguma vez na vida a lei orçamentária da União, do seu Estado, ou do Município, só pra ter uma ideia da magnitude dos valores?
Vamos poupá-los do trabalho: o gasto público anual com saúde e educação (tem um link aqui, ok?) é de quase QUINHENTOS BILHÕES de reais.
Somando o custo dos estádios e das demais obras da copa, temos um total de 25 bilhões de reais. Mesmo supondo que o evento não dará um único centavo de retorno, isso representa somente 5% do orçamento anual com saúde e educação.
Agora, será que alguém acredita mesmo que investir o dinheiro da Copa em saúde e educação resolveria alguma coisa? Simples assim?
Um estrangeiro que leia certos comentários na Internet deve pensar que, antes que nos amaldiçoassem com a organização da Copa do Mundo, o Brasil era um paraíso: as obras públicas ficavam prontas no prazo, não tinha corrupção, tudo funcionava. Ou pelo menos estava a ponto de funcionar, bastaria ter investido bem esses 25 bi, que era tudo de que precisávamos pros retoques.
Apenas para clarear ainda mais a insignificância do “custo Copa”: a União pagou em 2013 DUZENTOS E CINQUENTA BILHÕES DE REAIS em juros da dívida pública. Dívida que é gerada em grande parte vendendo títulos públicos pros banqueiros e pagando a eles juros mais altos do que a viúva cobra para financiar as grandes empresas via BNDES.
Nossa, é bem mais do que se gastou com a Copa do Mundo. E sai pelo ralo todo ano. Por que será que ninguém está falando disso?
Na verdade, não temos raiva da Copa "só" porque ela é mais uma oportunidade para o mau uso do dinheiro público. No fundo, sabemos que oportunidades melhores aparecem e estão sendo aproveitadas todos os dias, por décadas, por séculos.
Também não temos raiva da Copa porque o dinheiro gasto com as obras pedidas pela Dona FIFA poderia resolver os nossos problemas com saúde, educação, transporte, segurança. Ninguém acredita nisso.
Temos raiva da Copa pelo mesmo motivo que leva o marido traído a queimar o sofá da sala: ela nos obrigou a saber de coisas que preferíamos ignorar. Jogou na nossa cara uma realidade que não queremos encarar, porque não estamos realmente dispostos a modificar.
Como assim? Então, os bons cidadãos não querem que tenhamos um país melhor? Com mais eficiência, menos corrupção? Em que as coisas funcionem como no primeiro mundo?
Olha, podem até querer. Mas desde que eles não precisem mover uma palha pra isso acontecer. Porque, no fim das contas, como se expressa toda essa revolta da sociedade contra a Copa?
Temos uma minoria que anda por aí quebrando vitrines de bancos, queimando lixeiras e hostilizando jornalistas. Com certeza eles também vão tentar praticar algumas depredações durante a Copa. O grande objetivo desse grupo deve ser que as lixeiras queimadas sejam substituídas por outras com padrão FIFA e que os bancos instalem vitrines à prova de balas. Coisa de primeiro mundo.
Felizmente, a grande maioria da população expressa sua revolta de forma mais pacata: xingando muito no twitter e compartilhando coisas no facebook. Os mais indignados pregam a solução final: nunca mais votar no partido “x”. Provavelmente vão votar no “y”, que no passado também tentou trazer a Copa pro Brasil, sem sucesso, ou no “z”, que outro dia mesmo era aliado do “x”, que também já esteve antes do lado do “z”, e se perder as eleições amanhã estará junto de qualquer um dos outros dois, com o mesmo sorriso de sempre.
Não é essa, porém, a mensagem da Copa. E por dizer algo diferente é que ela nos irrita. O que ela diz, o que não queremos escutar, é que mesmo com todas as nossas mazelas, podemos ser grandes. Mas para isso precisamos mudar. Assumir nossas responsabilidades, o que não fizemos até hoje. E, no caso dos problemas da Copa, não temos como dizer que “não sabíamos”. Fomos avisados, com insistência, até. Mas não fizemos nada. Nunca fazemos nada, além de botar a culpa nos outros e alimentar a ilusão de que tudo vai melhorar nas próximas eleições.
Pois as chances disso acontecer são as mesmas da Austrália vencer a Copa do Mundo. O “caçador de marajás” não levou o Brasil pro primeiro mundo, nem o Doutor da Sorbonne. O Messias Barbudo também não conseguiu, muito menos a Gerentona. Agora estamos esperando por quem, pelo Batman de toga? Pelo Capitão Nascimento?
Quem sabe conseguiremos aprender alguma coisa com a Copa. Se não, que aprendamos com as Olimpíadas. Ou podemos continuar deixando as raposas tomando conta do galinheiro, e trocar as raposas de quatro em quatro anos. E continuará nunca sendo culpa nossa. Afinal, temos mais o que fazer do que ajudar a tomar conta do nosso próprio país.
Finalizo com uma adaptação da “oração da serenidade”, desejando que:

Sejamos sábios o bastante para aceitar as coisas que não podemos modificar;

Corajosos o bastante para modificar aquelas que podemos;

E estúpidos o bastante para jamais sermos convencidos de que há alguma diferença entre as duas.