quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

O Grande Truque


“Os homens inventaram o ideal para negar o real.”
(Friedrich Nietzsche)

Quando a alternativa é a danação eterna, não é preciso oferecer muito para se vender como paraíso. Porém, por mais que eu possa condenar (e condeno) a teologia do castigo, é inegável que a oposição entre céu e inferno faz algum sentido. Pelo menos ambos competem na mesma arena: são elementos que se inserem, juntos, numa narrativa mitológica.
Não tenho medo do inferno, nem espero pelas recompensas do paraíso (e quem se importa com o que eu penso?). Minha descrença de fato é irrelevante, exceto para reforçar a estranheza da conclusão a que cheguei: ofende menos a lógica acreditar em qualquer mitologia religiosa do que em certos argumentos utilizados para justificar as mais nefandas práticas terrenas. Porque as mitologias exigem apenas que pratiquemos a fé, aquela velha mania de crer no que não se pode provar. Mais poeticamente, que acreditemos no impossível. Para quem crê, haverá um pote de ouro no fim do arco-íris. Os defensores do indefensável pedem mais, que neguemos o real, ou o percebamos não em si, como aquilo que aconteceu, mas apenas em oposição com o imaginário, com o que não aconteceu.
Assim se justificam, por exemplo, os crimes cometidos pela ditadura militar que já foi chamada até de “ditabranda”: eles foram necessários para evitar crimes ainda piores, que com certeza seriam cometidos pelo regime sanguinário que existiria, se não tivesse existido o regime sanguinário que existiu.
Assim tentam nublar escândalos de corrupção, afirmando que as denúncias servem a interesses de “forças ocultas”, que pretendem implodir a abençoada estabilidade de que desfrutamos e destruir a imagem do nosso país, para depois servi-lo à rapina dos imperialistas.
Assim persistem os discursos de intolerância e preconceito, injustificáveis por si, mas que se fortalecem cinicamente marcando oposição a uma imaginária “ditadura das minorias”.
Assim seguem ganhando eco vozes que já foram sufocadas no passado, que pregam desde o retorno à Lei de Talião até um “novo conceito” para o termo escravidão. De nada importa que a realidade já os tenha derrotado antes. Sempre haverá moinhos de vento para os que se dispõem a serem quixotes.
É fácil entender por que essa técnica de persuasão é tão eficaz. Para todo mal que se faça, sempre haverá a possibilidade de um mal maior. Não há argumento de lógica que resista a um ato de fé. Temos, assim, duas opções: insistir em contrapor o racional ao emocional, a ciência à crença, o real ao imaginário; ou simplesmente aceitar que as pessoas acreditam no que querem acreditar. Conformar-nos com o fato de que, talvez, não seja possível demovê-las da paixão pelo ilusório, mas apenas confrontá-las com o real.
Portanto, deixemos os devaneios, paranoias e ilações sobreviverem nas mentes daqueles que os abraçam. Não importa. Não precisamos negar que havia o “risco” de que se instalasse aqui uma ditadura ainda pior do que a que houve. Ufa, ainda bem que não aconteceu. Só que o alívio de termos escapado desse terrível destino não faz com que um estado (nesse caso é com letra minúscula mesmo) que patrocinou sequestros, torturas, assassinatos e exílios, dentre outros delitos “menores”, deixe de ter sido vil, abjeto e criminoso.
Do mesmo modo, a possível existência de interesses políticos e financeiros puxando as cordinhas dos atores e delatores dos escândalos de corrupção não absolve os corruptos. O medo de ser oprimido no futuro não dá a ninguém o direito de ser opressor no presente.
Basta reconhecer que, no fim das contas, aquilo que fazemos é muito mais importante do que aquilo em que acreditamos. Bênçãos aos que creem no Paraíso e, por suas ações, nos aproximam desse ideal aqui na Terra. Maldições para ninguém, porque não acredito nessas coisas. “Eu acredito na pureza da resposta das crianças.” Acredito na utopia que não irei alcançar, na verdade que não conhecemos. Ah, e quem se importa com as coisas em que eu acredito?


quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Além da Linha Vermelha


Os leitores do blog costumam dizer que sou de “esquerda”. Dependendo de quem coloca o rótulo, o uso da palavra pode significar tanto simpatia pelas minhas ideias como a mais profunda e abissal aversão.
Já escrevi uma pequena série sobre a ânsia da humanidade por orientações direcionais (textos 1, 2 e 3), na qual pretendi pontuar que os conceitos que relacionamos com “direita” e “esquerda” estão um tanto anacrônicos, e que esse tipo de polarização passa longe do que deveríamos almejar. Posicionar à "esquerda" valores que devem ser universais, como o combate à desigualdade social e a defesa dos direitos civis, é cometer com os "bons" liberais as mesmas injustiças de que são vítimas os "esquerdistas" contemporâneos quando tentam colar entre suas (nossas?) bandeiras uma mixórdia que vai do socialismo autoritário pré-muro de Berlim ao capitalismo predatório chinês.
Confesso, porém, que essa contestação aos modelos tradicionais, que conduzo usualmente, sempre deixa perguntas no ar: se não vamos seguir pela “direita” nem pela “esquerda”, por onde então? Se pagar dívidas “pode não ser uma prioridade”, é para deixar de pagar ou não? Se a participação política não pode acabar no ato de votar, o que mais devemos fazer?
Não deixo perguntas sem resposta por acaso - como não será por acaso, nem por ser burrroo dá um zero pra ele que ofenderei a norma culta iniciando a próxima frase com um pronome oblíquo átono. O faço, algumas vezes, por não ter mesmo uma boa resposta. Em todas as vezes, por não querer que ninguém se guie pelas minhas respostas. “Ah, chegou atrasado, isso é filosofia clássica, se preocupar mais com perguntas do que com respostas.” Pode até ser. Mas não entendo nada de filosofia, não li nem o "Mundo de Sofia", e no geral me considero bem pragmático. Acho que as perguntas precisam de respostas. Mas elas devem ser conquistadas.
Por rejeitar verdades prontas, não abraço ideologias ou religiões. Malgrado as pretensas diferenças entre os muitos “ismos” que lutam ao longo dos séculos pela preferência do público, todos se assemelham dos modos mais absolutamente nocivos: provocam divisões, quando precisamos de união; e pretendem impor modelos de pensamento, ignorando que dependemos da liberdade tanto quanto de oxigênio.
“Nenhum homem é uma ilha”, poetizou John Donne. Mas todas as ilhas são diferentes, por mais que de longe possam parecer iguais. E para que os ávidos por respostas não me acusem de estar tergiversando novamente, afirmarei a única ideologia que tento praticar, e que desejo para todos: o livre arbítrio. Que cada um pense por si mesmo. Que construa suas dúvidas e certezas, seu único caminho. Único, não solitário, pois há muitas estradas que conduzem aos mesmos destinos. Mas que devem ser trilhadas com os próprios pés, não seguindo as pegadas dos outros.
Evidentemente, podemos e devemos fazer bom uso das placas dispostas ao longo da trilha. Por isso, de vez em quando, me arrisco a lançar uma conclusão ou outra, bem como a indicar fontes de pesquisa que explicam umas poucas coisas, ao mesmo tempo em que nos induzem a descobrir outras. E não deixo de defender minhas pautas: direitos humanos, liberdades individuais, Estado laico, redução da desigualdade social, transparência na gestão pública, emergência de novos modelos de participação política. Mas que continuem sendo minhas, e não de um “ismo” qualquer. Porque as quero livres, contagiantes, viralizantes, e não empacotadas. Que se afirmem por suas virtudes, e não por oposição a inimigos imaginários.

Pensei em encerrar dizendo que felizes são os que não precisam de gurus ou profetas. Pena que seria um fechamento enganoso, pois liberdade de escolha não é sinônimo de felicidade. Ser livre é apenas negar-se a viver como uma sombra ou marionete, rejeitar a mediocridade do caminho já trilhado. Por fim, há apenas uma coisa que posso dizer àqueles que procuram por uma estrela para seguir, ou por mandamentos para obedecer: libertem-se. A vida que vale a pena ser vivida não vem com manual de instruções.



sábado, 6 de dezembro de 2014

Os mais espertos da sala


As eleições passaram, mas a guerra continua. E a batalha que ocupou os noticiários na última semana é a proposta de “ajuste” da meta fiscal.
Resumindo o imbróglio: o Poder Executivo estabelece, a cada ano, metas de arrecadação e despesas para o exercício financeiro seguinte, por meio da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). O governo não pretende, em 2014, cumprir as metas que havia proposto na LDO. Assim, enviou ao Congresso (em novembro) um projeto de lei para modificar o sistema de cálculo da meta, incluindo como passíveis de abatimento no cálculo do superávit primário investimentos e desonerações que não estavam previstos na lei original.
Além da inusitada pretensão de estipular a meta depois de saber o que já foi cumprido, a tramitação do projeto nos reservou outras surpresas, incluindo a apresentação de um Decreto que aumenta a dotação parlamentar para emendas, desde que aprovada a mudança na LDO, e uma grande confusão entre grupos que protestavam no Plenário e os seguranças do Congresso.
Temos, assim, quatro temas em um: a expulsão dos manifestantes, a (in) conveniência do envio desse projeto no penúltimo mês do ano, o critério de “negociação” adotado pelo Governo, e, por fim, o mais espinhoso: que é “superávit primário”, e devemos mesmo nos preocupar com ele?
Sobre a expulsão: considero aceitável restringir o acesso de pessoas que realmente estejam atrapalhando, ofendendo, tentando obstruir no grito. Agora, isso seria em caráter de exceção. A regra é que o povo tem o direito de ocupar o Congresso. Mesmo se o “povo” no caso for a claque de um partido, de um sindicato, de uma ONG, ou um bando de viúvas da ditadura. Ser militante de uma causa, ainda que estúpida, não é hipótese de exclusão de direitos políticos. Botar todo mundo pra fora com truculência e depois votar com portas fechadas são atitudes que não combinam com nossas pretensões de sermos mais democráticos.
A segunda questão é quanto à conveniência de se alterar a LDO depois que ela foi aprovada. Não é a primeira vez que isso acontece, já foi feito por Lula, pela própria Dilma, até por FHC.
A história mostra que projeções econômicas se revelam equivocadas com frequência, às vezes por fatores imprevisíveis. Outras, porque o que chamaram de projeção era chute mesmo. Em todo caso, não concordo que as metas fixadas na LDO devam ser imutáveis. O ideal é que sejam mantidas, mas devem ser admitidos ajustes, se devidamente motivados. Difícil de aceitar é que a mudança ocorra no penúltimo mês do ano, com o exercício praticamente encerrado, para fazer conta de chegada. Denota, no mínimo, uma tremenda falha de planejamento.
A questão mais divertida é a terceira: dezessete dias depois de propor a alteração da LDO, o Poder Executivo enviou um Decreto liberando R$ 444.000.000,00 extras para emendas parlamentares, desde que aprovada a nova LDO. Quando vi isso, lembrei do seguinte trecho do livro “Brasil em Alta”, do jornalista norte-americano Larry Rohter:
“Uma coisa é um presidente (...) apoiar um projeto de um deputado de outro partido, em troca do seu voto (...): esse tipo de fisiologismo acontece em todas as democracias. Porém, no Brasil (...), também adotam práticas tais como (...) a compra descarada de votos.”
Assim parece até que evoluímos! Como estamos conseguindo combater um pouquinho a corrupção, as negociações do Executivo com o Legislativo precisam se tornar mais refinadas. Em vez da “compra descarada” de votos, troca de favores: vota esse que é bom pra mim que eu mando um bom pra você. Prática que, segundo Rohter, é comum em todas as “democracias”. Por que seríamos diferentes, se podemos ser iguais? Essa “venda casada” no apagar das luzes de 2014, portanto, tende a ser apenas uma pequena amostra do que pode acontecer daqui pra frente, na relação de um Executivo que parece forçado (e conformado) a ser “conciliador” com um Legislativo fragmentado e fisiológico.
Finalmente, a questão de fundo. O que é “superávit primário”? É o resultado do confronto das receitas não financeiras do governo (basicamente, impostos) e suas despesas não financeiras. Fazendo uma analogia com a vida cotidiana de um trabalhador, seria a sobra do salário depois de adimplidas as despesas básicas: saúde, alimentação, educação, moradia.
Numa análise superficial, parece lógico que é melhor sobrar do que faltar, e que o “superávit” seria desejável. A questão, porém, é muito mais complexa do que isso.
O objetivo de perseguir o “superávit primário” é o pagamento da dívida pública. Há mais de uma década, os planos orçamentários do governo devem ajustar as despesas à expectativa de arrecadação, de modo que sejam geradas diferenças positivas, os superávits, para honrar os encargos da dívida.
Para refletirmos sobre isso, vamos imaginar que somos chefes de uma grande família. E que herdamos dívidas. Por isso, precisamos controlar nossos gastos, economizar o máximo possível para amortizar essas dívidas. Porém, a renda que auferimos é limitada, os juros, altos, e as necessidades da família, muitas e crescentes. Vamos levando a vida assim até que um dia precisamos fazer uma escolha: alimentar os filhos ou pagar os juros do cartão de crédito.
Acredito que a maior parte dos pais não teria dúvida sobre o que escolher. E a escolha dos nossos sucessivos governos tem sido sempre, em primeiro lugar, pagar os juros do cartão de crédito.
“Ora, colocando assim, induz o leitor a pensar que é uma decisão errada. Mas quem deve tem que pagar. Por que ficou devendo, em primeiro lugar? Se não pagar agora, pode ficar pior depois. Tem que fazer sacrifícios, honrar os compromissos. Plantar para depois colher! Aliás, onde foi gasto o resto do dinheiro?”

Colocações pertinentes, difíceis de serem repercutidas na grandes mídia. Dá mais ibope mostrar um brucutu escorraçando uma velhinha raivosa. Desconfio, também, que quem comanda o espetáculo não tenha muito interesse em atiçar o povo (agora estamos falando do povo mesmo) com essas perguntas. Porque quem começar a procurar as respostas vai descobrir que tem muita gente se sacrificando há tempo demais, plantando para outros colherem. Que boa parte desses “compromissos” envolve interesses só confessados sob a benção das delações premiadas. Que existem dívidas maiores a serem pagas, algumas acumulando juros desde a chegada de Cabral. Mas essas continuarão esperando pelos trocados que sobrarem depois da fatia dos banqueiros; afinal, a lei manda que eles sejam sempre os primeiros da fila.