“Os
homens inventaram o ideal para negar o real.”
(Friedrich
Nietzsche)
Quando a alternativa é a danação eterna, não é preciso oferecer
muito para se vender como paraíso. Porém, por mais que eu possa condenar (e
condeno) a teologia do castigo, é inegável que a oposição entre céu e inferno
faz algum sentido. Pelo menos ambos competem na mesma arena: são elementos que se inserem,
juntos, numa narrativa mitológica.
Não tenho medo do inferno, nem espero pelas recompensas do paraíso
(e quem se importa com o que eu penso?). Minha descrença de fato é irrelevante,
exceto para reforçar a estranheza da conclusão a que cheguei: ofende menos a
lógica acreditar em qualquer mitologia religiosa do que em certos argumentos
utilizados para justificar as mais nefandas práticas terrenas. Porque as
mitologias exigem apenas que pratiquemos a fé, aquela velha mania de crer no
que não se pode provar. Mais poeticamente, que acreditemos no impossível. Para
quem crê, haverá um pote de ouro no fim do arco-íris. Os defensores do
indefensável pedem mais, que neguemos o real, ou o percebamos não em si, como
aquilo que aconteceu, mas apenas em oposição com o imaginário, com o que não
aconteceu.
Assim se justificam, por exemplo, os crimes cometidos pela
ditadura militar que já foi chamada até de “ditabranda”: eles foram necessários
para evitar crimes ainda piores, que com certeza seriam cometidos pelo regime sanguinário
que existiria, se não tivesse existido o regime sanguinário que existiu.
Assim tentam nublar escândalos de corrupção, afirmando que as
denúncias servem a interesses de “forças ocultas”, que pretendem implodir a
abençoada estabilidade de que desfrutamos e destruir a imagem do nosso país,
para depois servi-lo à rapina dos imperialistas.
Assim persistem os discursos de intolerância e preconceito,
injustificáveis por si, mas que se fortalecem cinicamente marcando oposição a
uma imaginária “ditadura das minorias”.
Assim seguem ganhando eco vozes que já foram sufocadas no passado,
que pregam desde o retorno à Lei de Talião até um “novo conceito” para o termo
escravidão. De nada importa que a realidade já os tenha derrotado antes. Sempre
haverá moinhos de vento para os que se dispõem a serem quixotes.
É fácil entender por que essa técnica de
persuasão é tão eficaz. Para todo mal que se faça, sempre haverá a possibilidade de um mal
maior. Não há argumento de lógica que resista a um ato de fé. Temos, assim,
duas opções: insistir em contrapor o racional ao emocional, a ciência à crença,
o real ao imaginário; ou simplesmente aceitar que as pessoas acreditam no que
querem acreditar. Conformar-nos com o fato de que, talvez, não seja possível
demovê-las da paixão pelo ilusório, mas apenas confrontá-las com o real.
Portanto, deixemos os devaneios, paranoias e ilações sobreviverem
nas mentes daqueles que os abraçam. Não importa. Não precisamos negar que havia
o “risco” de que se instalasse aqui uma ditadura ainda pior do que a que houve.
Ufa, ainda bem que não aconteceu. Só que o alívio de termos escapado desse
terrível destino não faz com que um estado (nesse caso é com letra minúscula
mesmo) que patrocinou sequestros, torturas, assassinatos e exílios, dentre
outros delitos “menores”, deixe de ter sido vil, abjeto e criminoso.
Do mesmo modo, a possível existência de interesses políticos e
financeiros puxando as cordinhas dos atores e delatores dos escândalos de
corrupção não absolve os corruptos. O medo de ser oprimido no futuro não dá a
ninguém o direito de ser opressor no presente.