Causou alvoroço na corrida eleitoral em São Paulo o
contraste entre o discurso e a prática do candidato do PSDB: dono de discurso
inflamado contra os movimentos sociais de ocupação, ou “invasores”, Doria se
viu em maus lençóis quando foi revelado que ele próprio ocupava (invadiu?) irregularmente um terreno em Campos do Jordão, mesmo após decisão judicial determinando
sua devolução ao município.
Fosse mera hipocrisia, o problema estaria resolvido por
aí. Nada mais normal do que um político com múltiplas faces. Porém, o caso
remete a uma distorção ainda mais profunda, que é a legítima crença de que a
lei no Brasil não pode ser igual para todos.
Não culpemos o candidato por acreditar nisso – até porque
a crença é verdadeira. Tampouco deve causar surpresa a “revelação” de que o
sistema legal protege os mais favorecidos; afinal, o poder econômico e o poder político
no Brasil sempre viveram em simbiose. Estranho seria se quem detém esse poder
aprovasse leis prejudiciais a si mesmos.
O que nos resta, portanto, é pensar nos porquês. Por que os
desfavorecidos aceitam a perpetuação das injustiças? E mais do que aceitar,
muitas vezes a legitimam, como poderemos comprovar no domingo pelos milhões de
votos que ganhará o candidato que sabe que a palavra “justiça” para ele não tem o
mesmo significado que tem para um sem-teto.
A pergunta rende possibilidades variadas de resposta, a
depender da ideologia de quem retrucar. Há até quem acredite que é assim mesmo
que tem que ser, e afirme a plenos pulmões o retrógrado conceito da
“igualdade” que trata igualmente os desiguais, ou da “meritocracia” em que 1%
da população larga com dez voltas na frente dos outros 99%.
Pretendendo, porém, fugir da ideologia, afirmemos um
ponto mais pacífico: se alguém é prejudicado sempre, e não reage, grande parcela da responsabilidade
recai na sua própria apatia. E essa apatia nasce da ignorância sobre sua real
condição.
A bandeira da educação é antiga, e (quase) unânime. Mas,
sem prejuízo da matemática, o grande salto depende de educação para a
cidadania. E por mais difícil que seja combater uma doença quando os “remédios”
são receitados pelos próprios agentes infecciosos, começa a se impor o desejo da sociedade por mais
participação política, por consciência plena dos seus direitos e deveres. E,
apesar de todas as forças em contrário, nada é mais forte do que uma
ideia cujo tempo chegou.
Como no rompimento de uma represa que já suportou pressão
demais, surgem por todo o país campanhas que buscam conscientizar, mobilizar, promover
a tal “educação para a cidadania” e, com o apoio da sociedade, conquistar
avanços efetivos na busca da igualdade de todos perante a lei.
Gostaria de destacar apenas duas iniciativas, que ilustram muito
bem um dos atuais focos de desigualdade: a injustiça fiscal, que se revela com clareza na
regressividade do nosso sistema tributário.
“Quanto custa o Brasil” é o tema da campanha do Sinprofaz,
Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda, que tem o objetivo de “conscientizar a população brasileira sobre a urgente
necessidade de mudanças no sistema tributário e levar ao Congresso Nacional
propostas de reforma tributária”.
Já a campanha “Pobrepagamais” denuncia a seletividade
inversa do ICMS no estado de São Paulo: além do imposto, por sua própria
natureza, pesar proporcionalmente mais sobre quem tem menor renda, as alíquotas
de muitos produtos básicos em São Paulo são mais altas que as de alguns produtos supérfluos. A
iniciativa é do Sindicato dos Agentes Fiscais do Estado de São Paulo (SINAFRESP).
Essas campanhas nascem do exercício da cidadania de servidores
públicos que possuem muita, mas muita vontade de mudar o país. E que estão
fazendo aquilo que políticos aferrados aos interesses dos grupos que se
beneficiam das injustiças do sistema jamais farão:
trabalhando em prol do bem comum, única razão legítima para a própria
existência do Estado.
Por isso, da próxima vez que se pegar pensando,
“precisamos mudar o Brasil”, pense um pouco mais: já estamos fazendo isso. O
que precisamos, de verdade, é que mais gente se levante e ajude a mudar o Brasil.