terça-feira, 18 de novembro de 2014

O dia depois de amanhã

“Essa aspiração se me afigura imoral e anárquica. No dia em que a convertêssemos em lei pelo voto do Congresso, teríamos decretado a dissolução da família brasileira.”
Parece o viúvo da ditadura ou um pastor qualquer pregando contra o casamento civil igualitário, não é? Nada disso, as palavras acima foram ditas por um parlamentar capixaba revoltado com a proposta do direito de voto para as mulheres durante uma sessão da primeira Assembleia Constituinte da República, em 1890.
O que esse trecho de discurso demonstra, além de escancarar o anacronismo de tantos que insistem em negar o presente para evitar o futuro, é que as coisas mudam. Por mais que possa ser difícil percebermos o fluxo da mudança, encarcerados que estamos num minúsculo pedaço do mundo, num átimo desprezível da história, ele está passando por nós, nesse exato momento. E podemos enxergá-lo, desde que saibamos para onde olhar.
Eu vejo a mudança em coisas que hoje consideramos pequenas, e vistas do passado seriam grandes conquistas, como votarmos em eleições diretas para Presidente da República pela sétima vez consecutiva. E a vejo também em coisas que sempre foram e sempre serão pequenas, nos espasmos agonizantes de minorias retrógradas que pedem menos direitos, menos povo, mais passado. Há até quem escancare o desejo de voltar às trevas e segure cartazes por “intervenção militar”. Já eram pequenos no passado, mesmo com o poder das armas; agora, são minúsculos e caricatos. Mas é bom que saiam do armário, porque para mudar de verdade precisaremos arrancar muitas máscaras.
E, se há alguma coisa realmente grande acontecendo, é que as máscaras estão caindo. Por mais que velhos atores ainda tentem se apegar a seus tão reprisados papéis, encenando um jogo em que não há corruptores, mas apenas corruptos, e estes estão sempre do “outro” lado, existe luz demais para que eles possam passar despercebidos por trás das cortinas.
Historiadores provavelmente elegerão um momento emblemático que marcará nosso rito de passagem para um novo país, com mais direitos, com verdadeira democracia. Em que vivenciaremos um nível de ética e de afirmação dos direitos individuais que, hoje, julgamos impossível. Mas, assim como o “Dia D” e o assassinato de Francisco Ferdinando, o marco escolhido terá mais valor romântico do que histórico.
Porque, no fim das contas, não terão sido as “diretas já”, nem a Lei da Ficha Limpa, nem os mensalões e petrolões. Não terão sido os negros e mulheres no STF, nem um retirante sem curso superior (ou uma mulher) na Presidência da República. Não terá sido junho de 2013, nem outubro de 2014. Não terá sido por causa do “homem do ano” que caiu do cavalo e agora está sendo julgado por crimes contra o mercado financeiro, enquanto dezenas de executivos saem algemados de empreiteiras. Não terá sido por causa de um Juiz do interior de São Paulo que, em 2011, autorizou o primeiro casamento gay do Brasil, nem por causa dos Ministros do STF que enjaularam os dirigentes do principal partido político do país. Não terá sido por culpa, ou por causa, desse partido, nem de nenhum outro. Mas será, ainda que ninguém esteja percebendo ainda, nem possa entender os motivos. Como poderíamos, se estamos olhando de dentro do redemoinho?
Não que eu creia numa “onda moralizante” após mais um grande escândalo, ou em muitas cabeças cortadas. Até duvido disso. Haverá, como sempre, muita impunidade, a começar pelos delatores, que já estão quase sendo tratados como benfeitores. Haverá corruptores se fazendo de “vítimas”, e gente acreditando neles. Interesses poderosos atuarão abafando explosões daqui, e reconstruindo pontes dali. Mas, desde que os primeiros tijolos viram o fundo do rio, já ficou claro que o novo caminho não poderá ser igual ao anterior.
Terá que ser melhor, eu digo. Pode ser pior, dirão os cínicos e pessimistas. Mas não será. Porque não somos os mesmos que éramos há cinquenta anos. Somos e seremos melhores. Temos muita coisa para destruir, e mais ainda a construir.
Claro que há incerteza e ameaças no caminho. Dias de tormenta, antes de noites com sol. Mas gosto de ver o país dando sinais de que caminha para um amanhã diferente. Adoro a verdade, ainda que tardia e pela metade; afinal, mesmo a metade é mais do que tínhamos. Aprecio as pequenas vitórias, porque elas nos dão força para continuar. Nos fazem acreditar que, finalmente, as vozes que até outro dia sussurravam envergonhadas, como se ser honesto fosse o único pecado abaixo do Equador, ecoarão como trovões. Que venha a tempestade.

“Dirão: "É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veio de Portugal". Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal. Eu repito, ouviram? Imortal! Sei que não dá para mudar o começo mas, se a gente quiser, vai dar para mudar o final!”
(Trecho final do poema “Só de Sacanagem”, autora: Elisa Lucinda)





sábado, 1 de novembro de 2014

A Exterminadora do Futuro

Claro que ninguém poderia prever, naquele fatídico 26 de outubro de 2014, que o resultado daquela eleição representaria, literalmente, o fim do Brasil. Nem mesmo na semana seguinte, quando as manifestações xenofóbicas e petições por separatismo e impeachment tomaram as redes sociais e, em menor escala, as ruas (uma passeata com 30 pessoas teria tomado a Avenida Paulista já no dia seguinte ao pleito), essa hipótese parecia sequer factível. Mimimi era o comentário mais comum de resposta ao grito dos revoltosos.
Todos apostavam que, passado o frenesi pós-eleitoral, a situação se acalmaria. Porém, uma série de atitudes impensadas da Presidenta reeleita, logo no início do seu segundo mandato, desencadeou uma série de revoltas populares, que desembocaram na então inimaginável guerra de secessão.
Até hoje não se sabe exatamente qual foi a fagulha que iniciou o incêndio. Alguns culpam um pacote de plebiscitos e decretos enviados pela Presidenta ao Congresso, que teriam como objetivo transformar o país numa Ditadura por meio da ampliação maciça da participação popular nas decisões de governo (?). Outros, a uma emenda no orçamento que destinava um extra de 0,003% das receitas de um tal “fundo de participação dos municípios” para o Nordeste. A tese mais aceita, porém, é de que a revolta só se instaurou mesmo quando foram anunciadas desonerações tributárias para equipamentos eletrônicos destinados ao consumidor de baixa renda, num programa batizado “Meu Tablet, Minha Vida”.
A população rica, instruída e trabalhadora do Sul-Sudeste, que precisava viajar para fora do país a fim de adquirir produtos sem pagar os escorchantes impostos brasileiros, que tolhiam sua renda e deterioravam cada vez mais sua condição de vida, não aceitou essa infâmia. No dia seguinte ao anúncio da desoneração, o Sul anunciou, no Facebook, sua separação. Um abaixo assinado virtual, lançado na mesma data, deu legitimidade e tornou irreversível o processo.
Nascia a Nova Argentina, formada pela união dos antigos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Para evitar futuros conflitos eleitorais, que pudessem levar a mais cisões, decidiu-se instalar a Monarquia. Ainda, considerando a renomada inapetência genética dos nascidos em solo brasileiro para gerirem os negócios do Estado, o Monarca teria que ser importado. Abriu-se uma enquete, cujo vencedor foi o Príncipe da Baviera. Seduzido por fotos da Oktoberfest e da Festa da Uva, o Príncipe interrompeu suas férias vitalícias numa estação de esqui alpina e aceitou assumir o trono da Nova Argentina.
O povo bandeirante logo seguiu o exemplo sulista. Porém, embora concordassem com a Monarquia, não viam necessidade de importar um nobre. A história do pujante Estado de São Paulo atestava a competência do puro-sangue paulista, principalmente quando ele era misturado com japoneses, chineses, coreanos, italianos, libaneses, fluminenses, e, quem diria, até com nordestinos.
Curiosamente, os movimentos revolucionários mais fortes se concentraram no apoio não a paulistanos históricos, mas a dois radicados: o artista, comediante e parlamentar Tiririca, e o cantor, escritor e filósofo Lobão. Tiririca, oriundo do Ceará, ex-palhaço de circo, tinha pouco estudo mas muita popularidade: acabara de conquistar, pela segunda vez, a maior votação do estado para a câmara federal. O carioca Lobão, após uma juventude turbulenta, com seguidas detenções por porte de substâncias psicoativas, se convertera em um ícone do movimento liberal. Sua heróica resistência às tentativas de instauração da ditadura bolivariana no Brasil inspirava a elite social e intelectual do país.
Porém, apesar da fama de Lobão, os seguidores de Tiririca eram mais numerosos. Numa rápida investida, tomaram o Palácio dos Bandeirantes e expulsaram de lá o governador. Só então perceberam que haviam se esquecido de um detalhe: onde estava o líder da revolução? Enquanto a cúpula debatia como manter o controle enquanto seu Messias não era encontrado, foram surpreendidos pela augusta figura do “Deputado Francisco Everardo” ao vivo na tevê. Informado pelo repórter de que estaria sendo aguardado em São Paulo para a coroação, Tiririca disse: “Ô abestado, mas quem qui disse qui ieu quero ficá lá cum aqueles doido? Si vão dividí mermo o Brasir, perfiro vortá pro meu Ceará!”
A desmobilização foi instantânea. O trono, assim, caiu no colo de Lobão, que adotou a alcunha de Woerdenbag I, Imperador Bandeirante.
Esperava-se uma forte reação do governo central ao movimento separatista. O que não aconteceu. Numa decisão surpreendente, a Presidenta Dilma abdicou do cargo e partiu para exílio voluntário na Bulgária. Na carta de renúncia, ela se declarou “chocada com as notícias vindas do Sul e de São Paulo, e, principalmente, com as fortes discussões nas redes sociais que desfazem amizades e semeiam a discórdia entre famílias. Retiro-me, assim, pelo bem maior.” Relatos não oficiais, contudo, sustentam que ela na verdade estaria “de saco cheio de tanta frescuragem”.
Na Bulgária, Dilma também foi eleita mandatária da nação, e finalmente concretizou seu sonho de outorgar uma Constituição Bolivariana. Mas, isso não tem grande importância para nossa história.
Com a renúncia da Presidenta, e a consolidação da Nova Argentina e do Império Bandeirante, nada impedia a fragmentação do restante do território brasileiro. As regiões Norte e Nordeste se uniram ao Rio de Janeiro e Espírito Santo para formar Cuba do Sul, sob a liderança do mitológico Presidente Lula.
No planalto central, como de hábito, ninguém sabia para onde ir ou o que fazer. Aproveitando-se do abandono da capital, os discípulos de Inri Cristo se uniram aos integrantes de uma comunidade hippie da Chapada dos Veadeiros e dividiram o território. Inri Cristo tomou o Palácio do Planalto, e os hippies, o Congresso Nacional. Como eles chegaram numa sexta-feira, não houve qualquer resistência. E assim, por obra do acaso, surgia um regime inédito no cenário mundial, a Teocracia Parlamentarista Libertária da Grã-Ordem Kavernista.
Havia, então, um único vazio de poder: Minas Gerais. Os mineiros tentaram se incorporar ao Império Bandeirante, mas o Imperador Woerdenbag os rejeitou, alegando que “não ia dar mole pra infiltração comunista”. Sem opção, acabaram se emancipando a contragosto. A República das Alterosas elegeu como líder provisório o candidato derrotado por Dilma na disputa presidencial, Aécio Neves. O reinado de Aécio, porém, foi brevíssimo. Após uma semana, por motivos até hoje não esclarecidos, ele fugiu em direção ao Rio de Janeiro, e requisitou asilo político em Cuba do Sul.
Aécio esperava ser perdoado por suas antigas desavenças com Lula, obter a cidadania cubano-sulista e abandonar a vida pública. Tudo que desejava era voltar ao seu modesto apartamento no Leblon. Porém, a imberbe nação de Cuba do Sul não podia se arriscar a um incidente diplomático desse porte, e negou o pedido. Aécio deveria voltar a Minas.
Desse ponto em diante, ele desaparece dos registros históricos. Com exceção de um boato de que teria sido visto a caminho de Brasília acompanhado do também ex-candidato à presidência Eduardo Jorge para se juntarem à Grã-Ordem Kavernista, nada mais se ouviu dele. É como se Aécio tivesse virado pó.
Gostaria de terminar este relato dizendo que a separação, ao fim, foi pelo bem geral da nação. Mas do ponto em que escrevo, vinte anos depois dos traumáticos acontecimentos narrados, essa seria uma visão falaciosa. Com exceção de Cuba do Sul, que prospera sob a liderança do Presidente Eterno Lula (que, aos 90 anos, caminha para um surpreendente sexto mandato), os demais Estados soberanos continuam aquém de suas potencialidades. A República das Alterosas, após superar a turbulência provocada pela fuga de Aécio, se firmou como um país pacífico e produtivo. Mas a falta de uma saída para o mar estrangula os produtores locais, que são obrigados a pagar taxas abusivas para usarem os portos de Cuba do Sul. 
Por falar em sul, a Nova Argentina se tornou berço de gente mansa, indolente e sem ambição. Alguns creditam essa mudança à influência nociva do Príncipe da Baviera, que se revelou nada mais que um bon vivant. Outros afirmam que o Sul já cumpriu seu projeto histórico se separando dos selvagens, e agora nada mais há a se fazer.
Espírito semelhante habita o território Grã-Kavernista, que regrediu a um modelo econômico pré-colonial. Isso gerou grande satisfação do povo indígena, que hoje ocupa boa parte do cerrado.
Sim, ainda não falei do Império Bandeirante. Infelizmente, nada sei sobre eles. O Imperador Woerdenbag há muito fechou as fronteiras e proibiu qualquer contato com o mundo exterior, para "proteger os súditos do perigo da disseminação de ideário subversivo”. Do fundo do coração, espero que estejam bem.