A imprensa tem uma especial atração por calamidades.
Homicídios, estupros, chacinas, atentados terroristas e afins dominam as
manchetes dia sim, outro também. Acostumamo-nos com esse submercado da morte,
ao ponto de não termos mais nossa atenção despertada por “qualquer” tragédia. Pessoas
morrem todos os dias. E, quanto mais notícias ruins recebemos, menos nos
importamos com cada uma delas.
Porém, mesmo no turbilhão da superinformação, há
acontecimentos que se revelam mais marcantes do que outros. Que sinalizam de
forma única e contundente a profundidade do abismo em que nos enfiamos.
Sábado, dia 28 de novembro de 2015. Cinco jovens, não por
merecimento, pobres, não por coincidência, negros, não por escolha, moradores
de periferia, não por acaso, inocentes, foram fuzilados por policiais
militares. Segundo a perícia, mais de cem tiros foram disparados contra o
veículo das vítimas.
Nenhum deles levantara a voz, as mãos ou uma arma contra
os policiais. Nenhum deles fora acusado de qualquer crime que “justificasse” a execução.
Aliás, sequer foram abordados pelos policias; apenas pelas balas.
Não é o primeiro, nem será o último assassinato cometido
por agentes da “lei”. Seria excesso de otimismo esperar que essa chacina em
particular marque um ponto de inflexão que nos
conduza a uma reforma das instituições de segurança pública, para que estas se
dediquem, por fim, ao objetivo (teórico) que motiva sua existência: proteger os
cidadãos. Ao contrário, como se nada houvesse acontecido no Rio de
Janeiro, em São Paulo os policiais militares partem para a guerra contra
estudantes.
Quantas mortes serão necessárias
para que percebamos que a coisa toda está errada? Será que um estudante de onze, doze anos precisa engrossar as
estatísticas de abatidos pelo Estado, para que nossos governantes percebam que não
é uma boa ideia enviar tropas de choque contra adolescentes cujo único crime é
lutar pelas suas escolas? Isso não é absurdamente óbvio?
Claro, não é óbvio para os
políticos e comandantes da PM, assim como não parece ser para o “homem médio”. De outro modo não teríamos, mesmo após uma chacina tão
absurda e desmotivada como a de Costa Barros, o tradicional comentário de que
“não se vê tanta indignação quando é um policial que é morto”. Frase que
demonstra, além de absoluta falta de empatia, alto grau de ignorância sobre
o que deveria ser uma força policial. Assim como nos acostumamos com mortes sem
sentido, também aceitamos com bizarra naturalidade a polícia como ela é, um
instrumento de guerra, e nem nos damos conta de que isso é tudo que ela não poderia
ter se tornado.
Com o perdão dos que entendem, desde sempre, qual a
diferença entre um policial matar um inocente e um policial ser morto por um
bandido, dedicarei umas poucas linhas a isto. Pois me convenci, após ler tantas
vezes tal indagação, que ainda é assunto nebuloso para muitos.
Vamos tentar clarear o horizonte com uma analogia. O Homem-Aranha está combatendo
o Doutor Octopus. Encurralado, o vilão recorre a um expediente traiçoeiro: com
seus tentáculos mecânicos, derruba parte de um prédio, provocando uma chuva de
tijolos sobre os pedestres. O escalador de paredes abandona a perseguição de
imediato e, com sua teia, monta um escudo para proteger os cidadãos. Sua
decisão é rápida, porque bastou seguir a premissa básica de sua atividade
super-heróica: ele sai às ruas para ajudar as pessoas. Prender bandidos é o
meio, e não o fim.
Policiais não são super-heróis, mas uma força de
segurança pública só faz sentido de tiver como objetivo primeiro e último o
mesmo seguido pelos super-heróis: defender os inocentes. Aliás, quem diz isso
não sou eu nem o Stan Lee, as próprias instituições o dizem, ao menos no papel.
Vejamos, por exemplo, a missão da Polícia Militar do Estado de São Paulo:
Proteger as pessoas;
Fazer cumprir as leis;
Combater o crime;
Preservar a ordem pública.
Fazer cumprir as leis;
Combater o crime;
Preservar a ordem pública.
Vamos repetir: proteger as pessoas. Em primeiro
lugar. A coisa mais importante que a polícia pode e deve fazer.
Portanto, quando um policial extermina as pessoas que
deveria proteger, há uma ruptura fundamental no tecido da sociedade. Bandido
matar policial é um crime bárbaro, lógico; mas o que se espera de um criminoso é que
cometa crimes. O que se espera de um policial é que os impeça. Ou pelo menos
que não os cometa.
E, num país em que deixamos de saber a diferença entre
policiais e criminosos, em que pretos e pobres e jovens e jovens pretos pobres já enterraram amigos demais para
que possam acreditar que ainda existe alguma diferença, só há uma certeza:
pelas esquinas e favelas do Brasil, os corpos continuam caindo, sem saber de
onde vem os tiros. Até quando?