quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Proteger e Servir


A imprensa tem uma especial atração por calamidades. Homicídios, estupros, chacinas, atentados terroristas e afins dominam as manchetes dia sim, outro também. Acostumamo-nos com esse submercado da morte, ao ponto de não termos mais nossa atenção despertada por “qualquer” tragédia. Pessoas morrem todos os dias. E, quanto mais notícias ruins recebemos, menos nos importamos com cada uma delas.
Porém, mesmo no turbilhão da superinformação, há acontecimentos que se revelam mais marcantes do que outros. Que sinalizam de forma única e contundente a profundidade do abismo em que nos enfiamos.
Sábado, dia 28 de novembro de 2015. Cinco jovens, não por merecimento, pobres, não por coincidência, negros, não por escolha, moradores de periferia, não por acaso, inocentes, foram fuzilados por policiais militares. Segundo a perícia, mais de cem tiros foram disparados contra o veículo das vítimas.
Nenhum deles levantara a voz, as mãos ou uma arma contra os policiais. Nenhum deles fora acusado de qualquer crime que “justificasse” a execução. Aliás, sequer foram abordados pelos policias; apenas pelas balas.
Não é o primeiro, nem será o último assassinato cometido por agentes da “lei”. Seria excesso de otimismo esperar que essa chacina em particular marque um ponto de inflexão que nos conduza a uma reforma das instituições de segurança pública, para que estas se dediquem, por fim, ao objetivo (teórico) que motiva sua existência: proteger os cidadãos. Ao contrário, como se nada houvesse acontecido no Rio de Janeiro, em São Paulo os policiais militares partem para a guerra contra estudantes.
Quantas mortes serão necessárias para que percebamos que a coisa toda está errada? Será que um estudante de onze, doze anos precisa engrossar as estatísticas de abatidos pelo Estado, para que nossos governantes percebam que não é uma boa ideia enviar tropas de choque contra adolescentes cujo único crime é lutar pelas suas escolas? Isso não é absurdamente óbvio?
Claro, não é óbvio para os políticos e comandantes da PM, assim como não parece ser para o “homem médio”. De outro modo não teríamos, mesmo após uma chacina tão absurda e desmotivada como a de Costa Barros, o tradicional comentário de que “não se vê tanta indignação quando é um policial que é morto”. Frase que demonstra, além de absoluta falta de empatia, alto grau de ignorância sobre o que deveria ser uma força policial. Assim como nos acostumamos com mortes sem sentido, também aceitamos com bizarra naturalidade a polícia como ela é, um instrumento de guerra, e nem nos damos conta de que isso é tudo que ela não poderia ter se tornado.
Com o perdão dos que entendem, desde sempre, qual a diferença entre um policial matar um inocente e um policial ser morto por um bandido, dedicarei umas poucas linhas a isto. Pois me convenci, após ler tantas vezes tal indagação, que ainda é assunto nebuloso para muitos.
Vamos tentar clarear o horizonte com uma analogia. O Homem-Aranha está combatendo o Doutor Octopus. Encurralado, o vilão recorre a um expediente traiçoeiro: com seus tentáculos mecânicos, derruba parte de um prédio, provocando uma chuva de tijolos sobre os pedestres. O escalador de paredes abandona a perseguição de imediato e, com sua teia, monta um escudo para proteger os cidadãos. Sua decisão é rápida, porque bastou seguir a premissa básica de sua atividade super-heróica: ele sai às ruas para ajudar as pessoas. Prender bandidos é o meio, e não o fim.
Policiais não são super-heróis, mas uma força de segurança pública só faz sentido de tiver como objetivo primeiro e último o mesmo seguido pelos super-heróis: defender os inocentes. Aliás, quem diz isso não sou eu nem o Stan Lee, as próprias instituições o dizem, ao menos no papel. Vejamos, por exemplo, a missão da Polícia Militar do Estado de São Paulo:
Proteger as pessoas;
Fazer cumprir as leis;
Combater o crime;
Preservar a ordem pública.
Vamos repetir: proteger as pessoas. Em primeiro lugar. A coisa mais importante que a polícia pode e deve fazer.
Portanto, quando um policial extermina as pessoas que deveria proteger, há uma ruptura fundamental no tecido da sociedade. Bandido matar policial é um crime bárbaro, lógico; mas o que se espera de um criminoso é que cometa crimes. O que se espera de um policial é que os impeça. Ou pelo menos que não os cometa.
E, num país em que deixamos de saber a diferença entre policiais e criminosos, em que pretos e pobres e jovens e jovens pretos pobres já enterraram amigos demais para que possam acreditar que ainda existe alguma diferença, só há uma certeza: pelas esquinas e favelas do Brasil, os corpos continuam caindo, sem saber de onde vem os tiros. Até quando?


sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Admirável Mundo Novo


“No futuro todos serão famosos por 15 minutos.” Quando cometeu essa frase, na década de 60, talvez Andy Warhol soubesse que ela atravessaria décadas, e que ele próprio se tornaria um ícone do pós-modernismo e de um mundo que já migrava numa espiral de superinformação e superficialidade. Talvez até mesmo visualizasse a Internet, os reality shows, as guerras em que mísseis são disparados por comandos de videogame. Mas suspeito que, se estivesse vivo hoje, mesmo um visionário como Warhol se espantaria com a intensidade do alcance da sua profecia.
As celebridades instantâneas do século XXI não são mais apenas os vencedores do American Idol; agora, a morte e a destruição também são servidas em lata. Chegamos ao ponto em que se tornou mais importante discutir quais mortes “merecem” nossa lamentação e um registro na linha do tempo das redes sociais do que parar para refletir, por mais de 15 minutos, sobre o que nos tornamos e como pudemos, sem perceber, construir um mundo tão cínico e insensato.
Vamos, então, parar por 17 minutos e reconhecer que existe algo de profundamente errado num mundo em que inocentes são metralhados por fanáticos religiosos; e tampouco é muito promissor o mundo em que cidades inteiras são soterradas por um mar de lama, porque um punhado de executivos decidiu que aumentar as margens de lucro é mais importante do que preservar a vida. Como se não fosse o bastante, tudo isso se passou no mesmo mundo; e enquanto decidimos entre hastear a bandeira da França ou a do Brasil, mais 27 mortos no Mali.
As tragédias de Paris, Mariana e Mali tem muito em comum, além do rastro de corpos e da bizarra disputa por atenção midiática. Todas refletem o resultado da banalização da morte, do desprezo pela vida humana. Por Deus, por dinheiro, ou pelos dois; de repente, a única coisa real que temos se tornou desimportante, sufocada por coisas que inventamos.
E tudo parece tão complicado, e parece impossível encontrar uma solução que não demore, com otimismo, centenas de anos. Quantas décadas para recuperar um rio morto? Quantos séculos até formarmos gerações que deixem de acreditar numa recompensa divina para aqueles que derramam o sangue dos infiéis? Quantas guerras até vencermos a guerra que não sabemos como vencer?
Gostaria de dizer que é fácil, se tentarmos. Mas a verdade é que estamos viciados em autodestruição, e livrar-se de um vício nunca é fácil. Não viveremos o bastante para ver um mundo livre da insanidade e da ganância, e isso parece absolutamente frustrante. Podemos, contudo, um dia de cada vez, sermos sensatos e gentis. Podemos, um dia de cada vez, ensinar aos nossos filhos que não há paraíso no céu para aqueles que praticam o inferno na Terra. Podemos, um dia de cada vez, sufocar aqueles que vivem do ódio preenchendo o mundo com amor. 
E assim, um dia de cada vez, eles serão derrotados. Pois sempre haverá quem insista na alegria de viver.
(Eu não vou lhes dar o presente de odiar vocês.)
(Antoine Leiris, que perdeu sua esposa nos ataques em Paris.)




quarta-feira, 14 de outubro de 2015

A grande roda da história


No último dia das crianças, meu filho pediu de presente um Banco Imobiliário. Não aquele que vem com uma calculadora, mas o que tem notinhas. Exatamente o mesmo que eu jogava quando tinha a idade dele, nos primórdios da saudosa década de 80. Bem, não exatamente o mesmo. As notas agora são impressas num papel de pior qualidade. Os imóveis e companhias do tabuleiro são outros. Temos, por exemplo, uma empresa de telefonia celular. E, por último e mais importante, na década de 80 os hotéis eram grandes casas vermelhas, que diferiam das casinhas verdes mais pela cor e tamanho do que pelo formato. Agora, os hotéis são torres acinzentadas.
Como tive muitas coisas a fazer entre a década de 80 e hoje, talvez não tenha prestado a devida atenção às mudanças que ocorreram enquanto minha própria vida passava. Mas abrindo o Banco Imobiliário moderno, olhando aquelas torres, me pus a pensar em como era diferente o mundo do “meu” Banco Imobiliário.
O filósofo alemão Hegel, morto em 1831, mais de cem anos antes da invenção do Banco Imobiliário, acreditava que o “espírito do mundo” evoluía progressivamente (embora não sem percalços) ao longo da história. Estaríamos, assim, sempre a caminho de patamares mais altos de autoconhecimento e de liberdade. Para Hegel, "A história universal nada mais é do que a manifestação da razão".
Difícil acreditar nisso, quando tudo a nossa volta parece tão sem sentido. Mas Hegel dizia também que “cada indivíduo é filho de sua época”. Não podemos antever o futuro e, a maior parte do tempo, nos esquecemos de olhar para o passado. Até que somos transportados repentinamente de volta no tempo por uma foto, pelo resgate de uma lembrança fugidia, ou por uma peça de Banco Imobiliário.
Produto da minha época que sou, sinto-me realmente incapaz de afirmar se Hegel tinha razão e o “espírito do mundo” caminha para a plenitude, e não para a entropia. Mas, quando penso que no mundo do “meu” Banco Imobiliário viver sob uma ditadura sanguinária do nosso lado do Equador era regra, não exceção; que, em 1935 o “Monopoly” foi lançado nos Estados Unidos entre duas grandes guerras, apenas quatro anos antes do início do holocausto; que o século XIX de Hegel trouxe, além das tradicionais guerras e da Revolução Industrial, a abolição da escravatura em quase todo o globo; nestes momentos, me permito pensar que talvez, apenas talvez, quando meu filho comprar o Banco Imobiliário do filho dele, não viveremos mais num país em que toda a linha sucessória da República esteja comprometida por escândalos de corrupção. Tampouco num mundo que deixa crianças morrerem afogadas para proteger linhas imaginárias, que discrimina, humilha e mata pessoas por causa da cor da pele, das tendências sexuais ou dos deuses em que calharam crer.
E, falando em crenças, percebo que, por mais agradável que seja imaginar um novo amanhã, somente acreditar não é o bastante. Como vaticinou o próprio Hegel, “nada de grande se realizou no mundo sem paixão”.
Não sei como será o mundo do Banco Imobiliário do meu neto. Não sei, sequer, se terei netos, se eles também ganharão Bancos Imobiliários, ou se ainda estarei por aqui para jogar com eles. Mas já não me preocupo tanto com o futuro. Escolho acreditar que, no fim, o que importa é a jornada, não o destino. E, enquanto arder a paixão, cada passo valerá a pena.


sábado, 5 de setembro de 2015

Valar Morghulis



Atribui-se ao filósofo grego Epicuro a seguinte passagem: “A morte não nos diz respeito. Pois, enquanto vivemos, a morte não existe. E, quando ela chega, nós já não existimos”.
Epicuro, porém, se esqueceu (ou fingiu se esquecer, para validar o próprio argumento) de que não passamos por este mundo sozinhos. Basta vivermos tempo suficiente que a morte nos atingirá uma, duas, três, quantas vezes ela vier. Até que venha para nós. Só então, finalmente, não importará mais.
Enquanto isso, parece que sempre haverá algo que ela possa nos roubar. As palavras que gostaríamos de ter dito. As que dissemos, mas queríamos dizer de novo. As promessas que não pudemos cumprir, e as que nunca fizemos. Os sorrisos que ficaram para trás. O passado que não poderá ser repetido. O futuro que não existe mais.
Não é nada fácil, portanto, agir como pregava o filósofo e simplesmente ignorar a morte. Enganamo-nos, porém, se pensarmos que ela de fato nos rouba alguma coisa. Tudo que a morte possa levar nunca havia sido de fato nosso. Nunca poderia ter sido. Tudo que realmente é, ou possa ser nosso, está fora do alcance da morte. A menos que resolvamos, por conta própria, caminhar para a sombra, permitir que ela invada o que não lhe pertence.
Virão, sim, dias que nascerão somente para outros olhos. Horas incontáveis, intermináveis, sem nossos pais, filhos e amigos. Lágrimas que correrão de nós, e por nós. Que a escuridão se estenda sobre esses dias, pois lá é o lugar dela. Mas apenas sobre eles. Não cedamos sequer um segundo a mais.
Que o tempo para morrer jamais supere o tempo para viver. Haverá, sim, tempo para chorar, sempre demasiado, e tempo para ser feliz, que teimará em acabar tão rápido. E como eu gostaria que houvesse tempo para encontrar as palavras perfeitas, que traduzissem o ensinamento mais importante e tão simples da vida: que ela seja nossa enquanto é. Mas nem sempre há tempo, e eis que já se vão muitos dias olhando para a tela em branco, procurando a frase final. Temendo, bem lá no fundo, que ela nunca apareça. Sabendo que, um dia, qualquer dia, não haverá mesmo tempo para mais nada.
Mas hoje não foi esse dia. Hoje, não. Hoje, consegui escrever até o fim. Hoje, não precisei deixar nada para trás. Hoje, descobri que nem precisava ter escrito nada, porque há mais de cinquenta anos houve um par de gênios que disseram tudo em poucas frases... pois é isso que os gênios fazem. Deixam presentes para nós. Provam que a vida não acaba quando termina. Iluminam aqueles momentos mágicos em que a vida vale a pena ser vivida. E, se ao ler estas linhas você se lembrar de alguma pessoa que fez isso por você, saiba que ela também foi genial. Chore se tiver que chorar. Mas antes de chorar outra vez, lembre-se: amanhã pode chover de novo. Então é melhor seguir o sol.


quarta-feira, 22 de julho de 2015

Meus malvados favoritos


Os minions do cinema são criaturinhas engenhosas que adoram bananas, e se destacam da multidão pelo formato diminuto, a marcante cor amarelo-ouro, e os indefectíveis óculos e suspensórios. Por trás da estética de brinquedinho de lanchonete, porém, eles ocultam um propósito funesto: a razão da sua existência é servir ao vilão mais terrível que conseguirem encontrar.
Dificilmente cruzaremos, ao vivo, com uma só criatura que tenha essa exótica descrição. Porém, se desprezarmos tais detalhes cosméticos, perceberemos facilmente que estamos cercados por minions.
Os minions reais, assim como os da ficção, também parecem à primeira vista inofensivos, e até engraçadinhos. Ah, não acha que minions reais possam ser cômicos? Bem, a próxima vez que vir um figurão escoltado por um séquito de bajuladores, tente imaginar a trupe que o segue, que vive repetindo e aplaudindo tudo o que ele diz, como um bando de pequenos seres amarelos. É, parecem humanos, mas são minions. E podem até ser engraçados de vez em quando, mas nada tem de inofensivos. Por trás de cada ditador, sempre existirá uma legião de minions.
Os minions da sétima arte pelo menos possuem uma atenuante para seu comportamento: servir a um líder faz parte da sua natureza. Eles não visam qualquer lucro com isso, o fazem apenas por que... bem, porque é o que os minions devem fazer.
Os minions de carne e osso não podem usar essa justificativa. Assim como qualquer outro nascido humano, eles foram amaldiçoados com o livre arbítrio. Porém, encontram na atitude minion um porto seguro. Em troca do pequeno sacrifício de abrir mão de quaisquer virtudes e ideias próprias, ganham acesso a um vasto leque de benefícios materiais, acessíveis apenas àqueles que sabem como agradar aos poderosos.
Claro que há outras vantagens em ser minion. Por exemplo, não se aborrecer com divagações inúteis e julgamentos morais a cada pequena decisão. Basta seguir o chefe, e não pensar mais nisso. Ele deve ter razão, afinal, ele é o chefe. E se não tiver razão, bem, ele é o chefe. Depois, quem se importa em ter razão?
Os minions orgânicos e os de pixels sofrem de forma idêntica ao perder a referência do líder. Ficam atarantados, abobalhados, até depressivos. A vida parece perder o sentido. Observá-los assim é curioso, mas não chega a ser engraçado, pois a tristeza e confusão que as criaturinhas emanam é quase contagiosa. Nesses momentos, se nos esquecermos do que eles fizeram no verão passado, podemos até ficar com pena deles. Principalmente se dermos ouvidos ao arsenal de desculpas que faz parte do kit básico de qualquer minion contemporâneo: estava apenas cumprindo ordens, não tive culpa, o sistema é assim mesmo, apenas executei, não tenho nada com isso, a ideia foi dele, não sabia que isso podia acontecer, blá-blá-blá banaaanaaaas.
Perdoe-os, se for um bom pagão. Mas é melhor nunca esquecer, porque eles estarão sempre prontos para fazer tudo de novo. Basta encontrarem um novo malvado para seguir.


segunda-feira, 13 de julho de 2015

Quem quer ser um milionário?


Quando criança, pensava que todo comerciante era rico. Não tinha a menor ideia do que significava “ter a posse dos meios de produção”, mas concluía de uma forma simplista que, se alguém tinha empregados e um monte de coisas pra vender, devia ter muito dinheiro.
Também queria ser trilhardário quando crescesse, igual ao Tio Patinhas. As histórias da Disney me mostraram, ainda, que ser dono de uma loja não era a única maneira de enriquecer. Havia atalhos para a fortuna, como encontrar minas de ouro ou poços de petróleo.
Com o tempo, descobri que minas de ouro e poços de petróleo são bem difíceis de encontrar, que montar o próprio negócio não é garantia de sucesso, e que os atalhos geralmente são sombrios. Percebi também que há coisas mais importantes a se fazer na vida do que tentar juntar uma enorme quantidade de dinheiro.
Mas, se alguns dos sonhos infantis se revelaram inadequados, minha percepção geral sobre os caminhos da fortuna até que era razoavelmente precisa. Empreendimentos envolvem riscos e, por isso, possibilitam retornos mais elevados. Aqueles que evitam os riscos envolvidos numa empresa própria, como os empregados dos comerciantes, devem se conformar com rendimentos menores.
Não foi pequena a surpresa quando constatei que a realidade comportava inúmeras, incontáveis exceções a essa regra, e que há funcionários públicos que conseguem a proeza de usufruir de rendimentos constantes e seguros, estabilidade no emprego, e ainda por cima acumular patrimônios nababescos. Não me refiro àqueles que são muito bem remunerados e, por conseguinte, usufruem de um padrão de vida confortável, bem superior a média da população, mas compatíveis com os seus vencimentos. Falo de autênticos gênios das finanças, que decuplicam seu patrimônio pessoal a cada ano, que alcançam retornos sobre o capital que fazem George Soros e Warren Buffett parecerem iniciantes sem talento.
Logo imaginei que minha visão inicial de risco x retorno estivesse radicalmente equivocada. Que fosse possível conciliar altos retornos com baixo risco. Toda essa gente seria a prova viva disso. Mas, ufa, não foi desta vez que me enganei. Errados estavam eles, ao se imaginarem imunes a qualquer perigo. Ou, talvez, até estivessem certos no passado. Mas não agora, quando finalmente explodem alguns dos riscos inerentes à empreitada em que se lançaram: o risco de encarar ônibus superlotados; de terem suas habilidades de investidores questionadas; de serem chamados (caluniados?) de mafiosos na primeira página dos jornais; e, afronta das afrontas, de precisarem passar férias em acomodações incompatíveis com o garbo de sua posição social.
Há quem permaneça cético. Há quem assevere que as coisas mudam apenas para permanecerem as mesmas, ou, como dizia o poeta, que o futuro repetirá o passado. Assim, crentes de que continuamos num museu de grandes novidades, já se preparam para voltar a fazer tudo tudo sempre igual.
Pois eu prefiro parodiar outras poesias, e acreditar que, para quem sempre se imaginou acima da lei, o futuro não é mais tão bacana como na semana passada. Que o temporal não passará tão cedo, não antes de varrer muito mais sujeira para o fundo dos esgotos.


terça-feira, 9 de junho de 2015

A Estrada da Fúria


O assunto da semana é o Cristo LGBT. Mas não, não vou escrever sobre isso, até tenho a impressão de que já nos deparamos com essa celeuma antes, quando uns malucos metralharam uma revista na França. Ah, lá era um desenho de Maomé, Jesus não é sequer parecido com Maomé. Depois, aqui não teve nem um tirinho (ainda). Nada a ver essa comparação, eram (alguns) muçulmanos contra o mundo lá, (alguns) cristãos x (alguns) gays aqui. 
De fato, quanta diferença!, a conclusão é a mesma: precisamos de outro século das luzes. Que seja logo o XXI, para que alguém consiga chegar ao XXII.
Por coincidência ou não, entre uma onda de intolerância e outra convivemos com um fluxo regular e insistente de demonstrações de boa vontade e espírito cristão. Quando não há uma transexual crucificada para espezinhar, a tradicional família brasileira tem se engajado numa trinca de causas nobilíssimas: a redução da idade penal, o direito ao porte de arma, e a pena de morte.
As manifestações de apoio a essas magníficas proposições são um espetáculo a parte. Vídeos de execuções e espancamentos viralizando. Centenas, milhares de comentários de celebração e êxtase, a cada notícia de um suposto marginal abatido nas guerras urbanas. Se for menor de idade, melhor ainda, afinal, esses pivetinhos não respondem por nada mesmo. Também quero uma arma, matar uns vagabundos, gravar um vídeo. Vai bombar no youtube! Menos escolas, mais prisões. Espera, isso tá errado. Menos prisões, mais cemitérios. Quanto mais idiota, melhor. Não, esse é outro filme. Volta pra realidade, termina o texto.
Lendo o parágrafo acima, tudo parece muito simples. Vamos desistir da humanidade, só tem malucos rumo ao autoextermínio. Mas, assim como as pessoas podem estar erradas pelos motivos certos, também podem estar certas pelos motivos errados. No meio desse festival de truculência, às vezes encontramos argumentos sérios, que mereceriam debate, vinculando as mudanças sugeridas a uma possível redução da criminalidade, justificando cientificamente a necessidade de uma revisão da idade limite para a responsabilização penal (acho estranho que ninguém fale de reduzir a idade civil também, os pacatos adolescentes de classe média adorariam poder tirar carteira de motorista com 12 anos, mas deixa isso pra outro dia), tratando o porte de arma como uma liberdade individual, etc. e por aí vai.
Malgrado já ter analisado uma penca de argumentos bons, ruins e execráveis de ambos os lados, sempre fui contra todas essas três propostas. E não foi por estar comprometido com os dez mandamentos ou os valores cristãos. “Não matarás”. “Dê a outra face”. É tão bom que essas coisas sejam ensinadas no catecismo dominical. Pena que a maioria dos fiéis esqueça das lições já na segunda-feira.
Nunca conseguia, tampouco, encontrar motivações racionais para justificar minha aversão, já que as pesquisas e teses divergem em alguns casos, são muito próximas em outros, enfim, jamais conseguiram me convencer, nem para o bem nem para o mal. A verdade é que nunca soube exatamente por que todas essas ideias, ou cada uma delas, me desagradavam tanto.
Claro, agora já sei. Para alegria daqueles que procuram respostas para as perguntas que não conhecemos, rumamos para uma conclusão. Para a minha conclusão, pelo menos. Quem não gostar que siga procurando a sua.
Meus motivos não tem a ver com o jeito que o mundo é. Nem com aquilo que pode acontecer com ele se passarmos a construir prisões para maiores de 16 anos em vez de 18, ou se supostos criminosos passarem a ser executados no aconchego de câmaras de gás e cadeiras elétricas depois de um longo processo judicial em vez de serem fuzilados sem demora no alto dos morros, na escuridão dos becos e nos rincões do ah-se-fosse-nosso Brasil. Tudo em que penso é no mundo em que não quero viver.
Não sei se encarcerar supostos delinqüentes juvenis a partir dos 12, 14 ou 16 anos reduzirá a violência urbana. Mas sei que não quero viver num mundo em que desistimos de educar nossos jovens e resolvemos, ao invés, amontoá-los em prisões, valas comuns e cemitérios.
Tampouco sei se institucionalizar a pena de morte evitará crimes hediondos, se salvará mais vidas do que as que serão tomadas. Mas sei que não quero viver sob a égide de um Estado que considere legítimo causar a morte dos próprios cidadãos. Quero um Estado que cumpra sua finalidade essencial, promover o bem comum. E não um que promova a solução final. E quão estranho seria incluir a pena capital numa Constituição promulgada “sob a proteção de Deus”! Bem, pelo menos isso poderia ser resolvido se virássemos um estado laico.
E as armas? Estaríamos mais seguros se pudéssemos carregar pistolas e espingardas para nos defender? Precisamos nos proteger de tantas ameaças, bem que uma bazuca seria útil de vez em quando. Há apenas um único e mísero detalhe de que não gosto sobre as armas. Elas servem para matar pessoas. E não, não quero viver num mundo em que eu saia de casa todos os dias preparado para eliminar outros seres humanos. “Ah, mas tem muitos bandidos soltos por aí, prontos para matar. Eles não ligam pra isso.” Verdade. Ainda bem que somos diferentes deles. Que não temos sangue em nossas mãos. Que nos importamos. Que não desistimos.
No fim, tudo é tão simples. Por mais cinza que o mundo se torne, ou pareça se tornar, o dilema é sempre o mesmo. Caminhar para a escuridão, ou para a luz. Marchar para a guerra, ou praticar a paz. Responder na mesma moeda, ou dar a outra face. Matar ou viver.


terça-feira, 26 de maio de 2015

Por amor ou por dinheiro


As pessoas reagem de forma diferente a momentos de crise. Há quem abaixe a cabeça e espere a tempestade passar. Há quem assista impotente enquanto sua vida é destruída pelos ventos e raios. Há quem enxergue a desgraça alheia como oportunidade e lucre vendendo “novas vidas” para os desamparados. Há ainda os que tentam reagir e se levantam contra as forças aparentemente imbatíveis da natureza.
O que as crises raramente trazem é serenidade. Ninguém tem tempo para pensar em meio a uma saraivada de balas. Porém, que atitude seria mais útil do que refletir, identificar os caminhos que nos levaram às dificuldades do presente, e que, se não combatidos, fatalmente se repetirão no futuro?
“Por que as coisas são assim?” é pergunta que se repete a cada má notícia, a cada decepção. Uma resposta comum, que deve ser muito popular nos manuais de auto-ajuda, é que “nós mesmos construímos nossas vidas e nossos destinos”.
Ora, mas isso parece uma grande idiotice. Se estamos insatisfeitos com nossas vidas, ou com o mundo em si, por que permitimos que ele seja do jeito que é? Por que não o consertamos, todos juntos, se nós mesmos o construímos? Por que alguns se calam e se escondem, enquanto outros lutam?
Economistas gostam de dizer que o comportamento humano é movido por incentivos. Tendo a concordar com eles. Quando analisamos atitudes com base em incentivos, ou em análises de risco/ benefício, é fácil entender a inação. Como as relações de poder em geral favorecem àqueles que se beneficiam das injustiças, atitudes individuais contrárias ao status quo tem pequena chance de potencializar transformações. Em contrapartida, há grandes chances de que os pretensos revolucionários sejam punidos, marginalizados, rotulados como subversivos e transgressores.
Sob esse ponto de vista, o inacreditável não é que tão poucos empenhem esforços contra as injustiças, mas sim que alguém ainda o faça. Atitude tão irracional só pode ser explicada por um senso moral e ético destoante da média da sociedade, presente em poucos e desafortunados indivíduos, ou por situações desesperadoras, quando não há escolha senão reagir. Outro não é o combustível das grandes revoluções.
Mas que panorama desanimador! Então as coisas precisam piorar antes de melhorar? Sem uma tragédia instaurada, a maioria das pessoas não se presta a sair do seu estado natural de inércia?
Assim parece ser. Mas se você é um dos desajustados que, inexplicavelmente, sente-se tentado de vez em quando a agir de forma altruísta (ou menos egoísta), e estava esperando um “final feliz”, não se desespere ainda. Não antes de dar uma boa olhada para o mundo ao seu redor.
Para algumas pessoas, as motivações mais fortes são mesmo aquelas relacionadas ao seu próprio bem estar. Elas não se importam em auferir benefícios em troca dos sacrifícios de outros, e, ao longo da história, tendem a acumular poder e riqueza. Esse processo é até natural, pois poder e riqueza são o que mais lhes importa, e dedicam suas vidas a persegui-los.
Outras, porém, têm certa repulsa em auferir benefícios a custa dos sacrifícios alheios, e não elegem como objetivo principal de suas vidas o acúmulo de riquezas. Não que desgostem de conforto e bens materiais; até gostam, apenas não o bastante para pisar sobre os crânios de outros seres humanos por isso.
Obviamente, os graus de repulsa às injustiças e de ambição variam muito; o importante é que esse segundo grupo, o “resto”, tenha ao menos alguns escrúpulos, um grau mínimo de empatia.
Vamos nos permitir certo otimismo e supor que esse “resto” compõe a maior parte dos seres humanos. Na verdade, seu tamanho nem importa tanto. O que importa é que percebam que são iguais naquilo que é mais relevante, e se unam em prol de seus objetivos comuns, que podemos resumir simplesmente em lutar pelos próprios interesses com justiça, e se erguer contra todas as injustiças, não admitindo que prosperem quaisquer privilégios à custa da miséria dos seus semelhantes.
Agora, perguntemos de novo: se parece tão simples, por que tantos se calam, quando deveriam falar? Por que tantos se curvam, quando deveriam se levantar?
Calam-se porque não escutam as próprias vozes. Curvam-se porque não conhecem o tamanho que terão, quando ousarem se erguer. Mas, em algum lugar, alguém sussurra. Alguém se levanta. Alguém desiste. Alguém finge não estar ouvindo. Alguém chama de novo. Outro alguém escuta.
E nós continuamos chamando. E percebemos que, a cada dia, há menos cabeças abaixadas.


terça-feira, 14 de abril de 2015

Bom dia, Vietnam


Me lembro de quando fui convocado para a guerra. Minhas pernas tremeram. Caí duro no chão. Minha mãe me balançava e gritava desesperada, chorando. Com a carta nas mãos. Com suas lágrimas manchando minha sentença.
Tinha dezoito anos. Nunca havia conhecido uma mulher. Nunca havia saído do Texas. E seria mandado para o outro lado do mundo. Para morrer do outro lado do mundo.
Me lembro dela chorando, naquele e em muitos outros dias. Me lembro que ela sempre repetia: filho, quando o pior começar, não seja corajoso. Procure um lugar seguro.
Essa frase ribombava na minha cabeça todos os dias, junto com as lágrimas da minha mãe. Escutava isso enquanto o sargento dava instruções. Escutava no avião que nos levou ao Vietnam. No acampamento. Nos exercícios.
Essa frase era tão forte na minha mente que, quando fui chamado para o campo de batalha, não tive qualquer pudor de parecer covarde. Fui até o sargento e implorei: por favor, eu só tenho dezoito anos. Sou filho único, minha mãe é viúva. Sou tudo que ela tem. O senhor poderia me posicionar num lugar seguro?
O sargento, que era um homem normalmente rude, olhou com pena para mim. Colocou as mãos nos meus ombros, mirou fundo dentro dos meus olhos e disse:
- Garoto, eu gostaria muito. Mas, se você não percebeu, estamos numa guerra. Quando as bombas começam a voar, não há lugar seguro.


domingo, 8 de março de 2015

De olhos bem fechados


Há tantos tipos de pessoas no mundo quanto há pessoas no mundo. Ou, parafraseando Jaime Lannister, não existem pessoas como eu. Há apenas eu. Mas, unicamente para este artigo, vamos simplificar e assumir que há quatro tipos de pessoas: as que perguntam o que o mundo pode fazer por elas; as que perguntam o que elas podem fazer pelo mundo; as que não estão nem aí pra ¶0®®@ nenhuma; e as que tem um pouco de cada uma das três anteriores, e que na verdade são o único tipo que existe mesmo.
Afirmo sem receio que a categoria predominante e socialmente aceita pela civilização judaico-cristã-ocidental moderna e contemporânea é a primeira. Mas, para dirimir quaisquer dúvidas, vamos refletir sobre o significado atual do termo “bem sucedido”. Aplicando-o, por exemplo, a um médico. Qual o objetivo da Medicina? Salvar vidas; ou, se quisermos ser mais rigorosos, cumprir o juramento de Hipócrates, cuja versão atualizada inicia com a seguinte frase: “Prometo solenemente consagrar a minha vida ao serviço da Humanidade.”.
O médico bem sucedido, portanto, deveria ser aquele que, ao consagrar mais intensamente sua vida a serviço da humanidade, salvasse o maior número de vidas. Desafio qualquer um, porém, a encontrar uma só menção a médicos que dedicam sua vida profissional a causas humanitárias, trabalhando em regiões inóspitas, com baixíssima (ou inexistente) remuneração, em que estes sejam qualificados como “bem sucedidos”. Não, poderemos encontrar uma série de adjetivos elogiosos a esses profissionais, mas jamais “bem sucedidos”. Um médico que dedica sua vida a serviço da humanidade implantando silicone em seios e nádegas de subcelebridades terá muito mais chances de ser “bem sucedido” do que um que prefira combater a epidemia de Ebola na África.
Claro que isso vale para todas as categorias profissionais. O advogado de sucesso não é aquele que mais contribui para a administração da justiça, o comunicador de sucesso não é aquele que mais fielmente se compromete com a divulgação da verdade. Para toda e qualquer carreira, a medida do sucesso é a conta bancária. 
Por mais que possamos não simpatizar com esse critério, ele é uma realidade, se não no mundo todo (que passo longe de conhecer), pelo menos na maioria dele, e com certeza na América. O que devemos pensar é: por que as coisas são assim? Ou, por que não deveriam ser? Afinal, não há nada de errado em desejar uma vida confortável, usufruir de alguns prazeres ao longo da vida. Por que alguém dedicaria sequer uma parcela do seu esforço para ajudar estranhos, almejando uma abstrata “contribuição para a sociedade”? E o que poderia, efetivamente, realizar?
Para reforçar a irracionalidade de viver “para o mundo”, vamos pensar em Oskar Schindler. Para quem não viu o filme, nem leu o livro, nem clicou no link, Schindler foi um industrial alemão que salvou a vida de mais de mil judeus durante a segunda guerra, empregando-os em suas fábricas. Os esforços de Schindler custaram a ele toda sua fortuna. Em troca, ele recebeu alguma ajuda financeira das organizações judaicas no pós-guerra, até 1974, quando faleceu, depois de quase três décadas de insucesso em diversas tentativas de novos negócios. Ganhou alguns títulos honoríficos, e teve a vida filmada numa obra extraordinária que levou sete Oscars em 1994.
Estima-se que de nove a onze milhões de judeus foram mortos no Holocausto. Schindler, portanto, reduziu o genocídio em 0,01%.
A história de Schindler tem muito a nos ensinar, mas, como o dia é de simplificações, atenhamo-nos a apenas uma lição: sacrifícios pessoais devastadores geram ganhos estatisticamente irrelevantes para a humanidade. Novamente, por que alguém faria isso?
“Para se sentir bem consigo mesmo” é uma resposta clássica. Mas será verdade? Preocupar-se com as pessoas geralmente produz apenas mais preocupação com as pessoas. Sempre haverá mais, muito mais a se fazer. Aliás, nunca vi isso tão bem representado como numa das últimas cenas da Lista de Schindler, quando o alemão chora por ainda ter um carro e um anel, se condenando por não tê-los vendido, o que poderia ter salvado mais duas ou três vidas.
Não vamos, porém, desconsiderar totalmente a força do altruísmo, ou do “egoísmo altruísta”, que seria a prática do bem como busca de satisfação pessoal. Como os judeus ensinaram a Schindler, “quem salva uma vida, salva um mundo inteiro”. E, do mesmo modo que grandes atos individuais tem pouca relevância global, pequenos gestos podem mudar radicalmente a vida daqueles que nos cercam.
Sob esse ponto de vista, Schindler não salvou 0,01% das potenciais vítimas do holocausto; salvou mais de mil mundos. E nós, simples espectadores do nosso tempo, ao darmos um presente de natal a uma criança pobre, não estamos concedendo um mísero minuto de alegria em meio a uma vida de tristezas. Estamos, talvez, acendendo uma luz que vai mostrar àquela única criança que existe solidariedade, que um futuro diferente é possível.
“Ah, mas não viemos até aqui para cair no clichê do copo meio cheio ou meio vazio, viemos?”
Melhor não, isso seria frustrante. Retornemos então a uma visão objetiva, e reconheçamos uma pequena verdade: como indivíduos, podemos fazer muito pouco. Como coletividade, pouco fazemos, até porque sequer nos enxergamos como parte de um coletivo. A injustiça é mais forte do que nós e tentar combatê-la só causa angústia. Por isso, fugimos. Mas, e se não fosse possível fugir? Se não houvesse meios de fechar nossos olhos? Se houvesse crianças morrendo de fome ao alcance de nossos braços, e não em documentários ou estatísticas? Nesse caso, a pergunta seria outra: como poderíamos viver pensando em acumular bens, enquanto cadáveres se amontoam aos nossos pés?
Não poderíamos. Não suportaríamos olhar, todos os dias, para crianças sentadas num chão sujo, famintas, com os dedos sangrando, costurando nossas roupas e sapatos. Mas daqui de onde escrevo, ou de onde você lê, não podemos ver essas crianças. E, de fato, não queremos vê-las. Não queremos sentir seu sofrimento, nem partilhar o seu desespero. Se há uma escolha, escolhemos não ver. E, não vendo, podemos até esquecer que elas existem.
O problema é que, em algum outro lugar do mundo, fechar os olhos não é uma opção. Não enquanto bombas caem dos céus e corpos são plantados na terra. Mas esse não é o mundo que queremos, não é o mundo que pode nos fazer felizes. Por isso, seguimos de olhos bem fechados. Seguimos olhando para nós mesmos. E de que outra maneira seria possível viver?

"Senti que os judeus estavam a ser destruídos. 
Tinha que os ajudar; não havia escolha".
(Oskar Schindler)




quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Constantine: Primeira Temporada


John Constantine é um personagem de destaque na linha adulta de quadrinhos da Detective Comics. Ocultista, demonologista, fumante inveterado, cínico e arrogante. Apesar de (ou por causa de) toda sua falta de escrúpulos e virtudes, o anti-herói arregimentou uma considerável legião de fãs. Após o sucesso de Arrow, era previsível uma enxurrada de séries inspiradas nos quadrinhos da DC, e em 2014 ela veio com Flash, Gotham e, claro, Constantine.
Infelizmente, a primeira temporada não teve o sucesso esperado, e a produção foi interrompida pela NBC após somente treze episódios. Há boatos sobre uma renovação da série na própria NBC, ou (o que parece mais provável) sua transferência para algum outro canal. Como o futuro é incerto, vamos logo ao assunto: minhas impressões sobre a primeira temporada de Constantine.
Malgrado a ameaça de cancelamento, a série não é ruim. Matt Ryan convence como John Constantine, o que ajuda muito a trama, já que todos os conflitos giram em torno do seu astro. Pena que os coadjuvantes não acompanham o ritmo. O “team Constantine”, composto pela vidente Zed (sim, ela é bem bonita!) e pelo motorista e pau-pra-toda-obra Chas (OMG they killed Kenny, er, Chas), transita apaticamente pelos episódios, a maior parte do tempo se limitando a seguir as pegadas do protagonista. Deviam saber que não é muito inteligente confiar em John Constantine :). Há raros momentos em que Zed e Chas emanam luz própria, ou entram em conflito com John; não por acaso, quando isto acontece o nível da série dá um salto. Fica até difícil avaliar o desempenho desses atores, quando a história foi tão pouco generosa com seus personagens. Para não ficar em cima do muro, acho que Charles Halford (Chas) se sai melhor do que Angélica Celaya (Zed), que pelo menos é brilhante na função de enfeitar a tela. Harold Perrineau, mais conhecido como o mala Michael de Lost, completa o elenco principal interpretando um anjo que busca a ajuda de Constantine para deter as “trevas ascendentes”. 
Essa ameaça, que seria o fio condutor do roteiro, permanece etérea ao longo de toda a temporada: não sabemos o que John precisa fazer para deter a “ascensão das trevas”, aliás, nem ele sabe, ou parece se preocupar realmente com isso. Constantine e sua trupe enfrentam as ameaças na medida em que elas aparecem, e pronto. O problema (mais um) é que Supernatural faz isso melhor há dez temporadas, com a vantagem extra de integrar melhor os episódios "avulsos" ao plot principal. 
Intensidade talvez seja a melhor palavra para definir o que faltou, até aqui, em Constantine. A boa atuação de Ryan não é suficiente para empolgar em meio a coadjuvantes apagados, um roteiro não mais que mediano, e uma atmosfera de terror light que não me pareceu a mais adequada para o personagem. O que não impediu, porém, que fossem cometidos alguns episódios muito bons. Destaco o 1.03, Feast of Friends, o 1.10, Quid pro Quo, e o derradeiro 1.13, Waiting for the man, para mim, o melhor da série. Aliás, eis algo de positivo a se dizer, que pode alimentar a esperança de uma segunda temporada: houve uma sensível melhora nos quatro episódios finais. Talvez a equipe esteja acertando a mão, e Constantine ainda seja capaz de entregar aquilo que promete. Porque a impressão que fica é que havia potencial para ser muito melhor. Que será uma pena se não virmos mais Matt Ryan como John Constantine.
Pesando tudo, daria uma nota sete para a primeira temporada de Constantine. A série patina entre o bom e o regular, o que não costuma bastar para garantir um lugar ao sol no concorridíssimo mercado televisivo norte-americano atual, pontuado por produções de altíssima qualidade (aguardem o post sobre a melhor que assisti nos últimos tempos, True Detective). Mas, para encerrar, vamos responder à pergunta que impulsiona aqueles que resolvem ler uma crítica: devo assistir à série?
Bem, se você é fã do personagem, óbvio que sim. Se não o conhece, nem costuma gostar de histórias sobrenaturais, pode passar longe. Se não é fã, mas gosta do gênero, depende da sua agenda. Se estiver em dia com Supernatural, American Horror Story e Penny Dreadful, não custa passar umas dez horinhas com John Constantine. Espero que sejam agradáveis e, ao final delas, também comece a torcer para que o mago mais sacana dos quadrinhos volte às telas, levando o inferno ao Inferno por mais algumas temporadas.
#saveconstantine



quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

A hora mais escura


Há menos de três meses, externei grandes esperanças em relação ao futuro do país. Na época, pensava haver motivos suficientes para tal otimismo. Afinal, em 2014 foram descobertos e denunciados uma série de casos de corrupção (como a máfia do ISS, a queda do “Império X”, o “petrolão”). E as denúncias, finalmente, vieram acompanhadas de prisões. Como se não bastasse, também tivemos o aniversário de um ano de cadeia dos condenados no mensalão.
Objetivamente, as coisas não parecem ter mudado muito desde então. Delatores continuam delatando, executivos entram e saem de carceragens, o homem mais rico do país na semana passada assiste à Polícia Federal apreendendo suas modestas posses. Não obstante, minhas expectativas já não são as mesmas. E o que as fez mudar, creiam, foi um comentário singelo, que encontrei reproduzido mais vezes do que seria desejável (bem, uma vez já seria mais do que o desejável), que apresenta a “solução final” para a corrupção: privatizar.
O contexto, evidentemente, é o noticiário que envolve a Petrobrás. E eu, que pensava ser óbvia a falta de correlação entre comportamento desonesto e o caráter público, ou privado, de uma instituição, constato que estava enganado e que mais uma vez o óbvio escapou aos olhos de muita gente (ok, sempre tem uma chance de 0,01% de eu me enganar). Para minorar meu equívoco, sugiro que cliquem aqui e leiam um excelente artigo sobre o comportamento desonesto, repleto de gráficos, pesquisas e referências. Aviso logo que abordarei o tema de modo bem mais simplificado.
Feito o alerta, vamos iniciar construindo uma linha de raciocínio que nos permita enfrentar a espinhosa questão proposta: como erradicar a corrupção? O primeiro passo é definir o problema. Moleza, o problema é a corrupção. O segundo passo, identificar suas causas. Por que existe corrupção? Opa, isso já não é tão fácil de responder.
A simples proposição da pergunta deve bastar para percebermos que o problema é complexo – e, como tal, não será resolvido com uma “bala de prata”. Acreditar em soluções simples para problemas complexos é, no mínimo, ingenuidade. Não nos contentemos, porém, em negar apenas que a “solução” é privatizar. Vamos além, para demonstrar que privatizar (ou estatizar, ao seu gosto) sequer arranha a solução.
Por que alguém praticaria um ato de corrupção? Visualizo um processo que envolve, no mínimo, quatro elementos: a ambição (intenção de auferir vantagem); a ausência de uma formação ética e moral que o impeça de adotar um comportamento reprovável para auferir essa vantagem (às vezes o vazio moral é tão profundo que o agente sequer reconhece que o comportamento é condenável); a avaliação de que os benefícios superam os riscos (no popular, a confiança na impunidade); e, por fim, a oportunidade.
Os dois primeiros elementos são subjetivos, e com certeza privatizar ou estatizar empresas não tornará as pessoas menos gananciosas, tampouco modificará os valores morais delas.
No quesito impunidade, os riscos tendem a diminuir quando retiramos o poder público da equação. Não há legislação adequada no Brasil para atos de corrupção exclusivamente privados; quando há lei, as penas são menores do que nos casos de corrupção pública; as empresas privadas não estão sujeitas aos mesmos controles das públicas; etc. etc. e se duvida, ou, pior, “não sabia” que existe (muita) corrupção no setor privado, leia isto e pelo menos um pouco disto.
Analisando o último elemento, oportunidade, e tomando como exemplo justamente a Petrobrás, de que modo privatizá-la reduziria as chances de atos ilícitos? A empresa continuaria contratando obras, vendendo serviços e assumindo obrigações, tanto com particulares quanto com o poder público. Ser pública, privada ou de economia mista afeta o fórum em que futuros desvios são julgados; mas dificilmente impediria um diretor inescrupuloso de pedir propina ao empreiteiro. Aliás, não custa lembrar que as empreiteiras que ocupam o outro pólo da “lava-jato” são todas empresas privadas.
“Ah, mas a corrupção em empresa particular é diferente. Lá podem até roubar, nem me importo, porque o dinheiro é deles. Numa empresa pública, estão metendo a mão no meu dinheiro!”
Bem, o seu dinheiro devia estar num banco, ou debaixo do colchão. Imagino que o interpelante queira se referir aos recursos públicos, que provém das mais diversas fontes, uma das quais, os tributos que somos compelidos a pagar. Sabem de onde não vem os recursos esperados? De empresas que sonegam impostos, chegando até (segundo as más línguas) a contribuir generosamente com agentes públicos ou políticos para que estes não vejam seus ilícitos, ou, melhor ainda, imponham leis em seu benefício, tornando lícito o que deveria ser ilícito.
Agora, se quisermos falar do nosso dinheiro mesmo, aquele que podemos gastar livremente, um ambiente de negócios corrupto tem como conseqüência direta o aumento dos preços dos produtos que consumimos. Não acreditam? Não leram o relatório de 150 páginas da Transparência Internacional? Tem um resumo aqui.
Enfim, apenas para deixar claro que estamos falando de uma coisa, e não de outra: quem entende que o Estado não é o agente mais apropriado para explorar petróleo, ou emprestar dinheiro, ou operar estradas, e deveria se ocupar de atividades mais propícias ao bem comum (como saúde, educação, segurança), ótimo. Que alinhe seus melhores argumentos e defenda as privatizações. Mas não sejamos tolos ao ponto de acreditar que privatizar é um remédio contra a corrupção. Que basta parar a música, trocar as pessoas sentadas nas cadeiras, e vislumbrar um pôr do sol reluzente. Não, desta vez precisamos derrubar as cadeiras.
Mas se isso parecer difícil demais, se preferirem continuar exercendo o direito inalienável de se iludirem com não-soluções fáceis, por favor, pelo menos pensem um pouco antes de verbalizar semelhantes tolices. Porque quero continuar acreditando que, se as velhas estruturas um dia caírem, seremos capazes de construir alguma coisa melhor no lugar. Que não nos deixaremos enganar com uma mera troca de atores, a serviço dos mesmos interesses de sempre. Que nos cansamos de ver o futuro repetir o passado.

E para encerrar, lembrando que estamos, de algum modo, tratando da Petrobrás, a trilha sonora é em homenagem à situação atual da empresa. Bom carnaval!