quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Os Infiltrados

O governador de São Paulo assinou no dia 23/11 autorização para que o Movimento Brasil Competitivo (MBC) inicie um trabalho no estado com os objetivos de “melhorar a eficiência na arrecadação e combater a sonegação”.
Curiosamente, a autorização de Alckmin para que o MBC inicie sua “colaboração” veio exatamente um dia depois do Rio Grande do Sul decretar estado de calamidade financeira. O que tem uma coisa a ver com a outra? Em 21/05/2015 o Rio Grande do Sul anunciou com pompa um “Acordo de Resultados” que definia as prioridades do governo para o próximo exercício, e que fora elaborado com o auxílio do... MBC.
Não devemos, porém, concluir apressadamente que se o MBC não ajudou (até agora) o Rio Grande do Sul não possa ajudar São Paulo. Pelo menos não sem antes entender que organização é essa.
O MBC é uma associação sem fins lucrativos (claro...), de interesse público, que tem como missão “promover a competitividade sustentável do Brasil elevando a qualidade de vida da população”. Dentre os seus apoiadores figuram empresas como Ericsson, Natura, Suzano e Gerdau. Aliás, o presidente do Conselho Superior do MBC é Jorge Gerdau.
Em resumo, o MBC aglutinou grandes grupos empresariais do país, que cedem recursos humanos e materiais para colaborar com a gestão pública, provavelmente imaginando que, em breve, seu trabalho ajudará a construir um ambiente de negócios mais próspero, com benefícios para toda a sociedade. Esta é uma dedução razoável, com base nos objetivos declarados pelo próprio grupo.
E assim  Alckmin se encanta com o MBC e, após tomar conhecimento (ou não) do  apoio que prestaram a outros estados (como o Rio Grande do Sul), resolve convidá-los para “melhorar a eficiência na arrecadação”. Em português coloquial, aumentar a receita de impostos.
Agora é que a coisa começa a se complicar. Será que os associados do MBC querem pagar mais impostos? Pensariam eles que o caminho para a “competitividade sustentável” passa por transferir ainda mais recursos do setor produtivo para o Estado? Será possível que essas empresas, por sinal contribuintes do ICMS, imposto que responde por mais de 80% da receita do estado de São Paulo, estejam interessadas em ajudar o governo a tirar mais dinheiro delas?
Ah, mas esperem que em seguida o governador completa: “evitar sonegação, que é uma concorrência desleal”.
Agora sim! As empresas associadas ao MBC com certeza são fiéis cumpridoras das obrigações tributárias, e sofrem com a concorrência desleal dos que não pagam seus impostos. Agem portanto para proteger os próprios interesses (que neste caso se alinham ao interesse público) quando se unem ao Estado no combate aos sonegadores.
É uma boa história, e até poderíamos comprá-la se o grupo Gerdau não tivesse sido outro dia mesmo condenado pelo CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) a devolver aos cofres públicos 4 bilhões de reais. Vamos relevar esse pequeno deslize? Afinal, qualquer um é passível de erro, e a legislação tributária é mesmo muito complexa. Mas será que podemos relevar também o fato do presidente da Gerdau ter sido indiciado pela Polícia Federal na Operação Zelotes pelos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva e lavagem de dinheiro?
Melhor passar para outro tópico. O primeiro diagnóstico a ser realizado pelo MBC será sobre os processos de cobrança da Sefaz e da Procuradoria Geral do Estado (PGE). Excelentes intenções, melhor recuperar os créditos já constituídos e não pagos do que aumentar a carga de impostos sobre os bons contribuintes. Não obstante, os associados do MBC colaborariam mais efetivamente com a PGE se apenas liquidassem os débitos milionários de sua responsabilidade já inscritos em Dívida Ativa. Acreditaria Alckmin que eles vão auxiliar a PGE a cobrar com mais eficiência suas próprias dívidas? Seguindo essa lógica, talvez a próxima iniciativa do governador seja colher sugestões de criminosos condenados para melhorar a eficiência da persecução penal.
Pausa: Quem ficou curioso para saber se essas empresas realmente estão em débito com o estado de São Paulo, as informações são públicas e fáceis de acessar: consultem a lista de associados do MBC, depois encontrem os CNPJs base com auxílio do Google, em seguida consultem os débitos inscritos no site da PGE. Podem começar pelas quatro que citei de exemplo lá no início do texto. Fim da pausa.
Mas, se não o gosto pelo auto suplício, qual poderia ser o interesse do MBC nesse acordo de “colaboração”?
Quanto a isso, podemos apenas especular. Benefício pecuniário direto não há, porque o acordo não envolve a transferência de recursos financeiros. Envolve, porém, o compartilhamento de informações. Os “dados” de que o MBC necessita para fazer seus diagnósticos são informações econômicas reais, protegidas, em tese, pelo sigilo fiscal. Será que os demais contribuintes do estado, não ligados ao MBC, concordam em compartilhar suas informações? Os dados disponibilizados seriam suficientes para que os associados do MBC adquiram informações privilegiadas sobre o mercado, ganhando assim vantagem concorrencial? Ou qualquer abertura de informação obedecerá a mais estrita legalidade, e não será hábil a propiciar qualquer vantagem econômica?
Devemos supor que o governo não será irresponsável ao ponto de cometer uma ilegalidade de tal porte, e que o MBC não terá benefícios por acessar essas informações. Só nos resta, portanto, a hipótese do interesse genuíno de colaborar com a sociedade, entregando os resultados prometidos: “apontamento de oportunidades identificadas para aprimoramento da situação atual diagnosticada”. Em português coloquial, indicar para onde a Administração Tributária deverá apontar suas armas.
Enfim, chegamos a uma motivação lógica para o suposto altruísmo do MBC. Que empresário não gostaria de indicar que as melhores “oportunidades” para a fiscalização estão na porta ao lado, e nunca na sua própria?
Ou talvez, como parece acreditar Alckmin, o que eles realmente desejam é pagar mais impostos, serem fiscalizados com mais severidade, e saírem derrotados em todos os processos de execução fiscal que enfrentam ou que venham a enfrentar.


quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Uns mais iguais que os outros

Causou alvoroço na corrida eleitoral em São Paulo o contraste entre o discurso e a prática do candidato do PSDB: dono de discurso inflamado contra os movimentos sociais de ocupação, ou “invasores”, Doria se viu em maus lençóis quando foi revelado que ele próprio ocupava (invadiu?) irregularmente um terreno em Campos do Jordão, mesmo após decisão judicial determinando sua devolução ao município.
Fosse mera hipocrisia, o problema estaria resolvido por aí. Nada mais normal do que um político com múltiplas faces. Porém, o caso remete a uma distorção ainda mais profunda, que é a legítima crença de que a lei no Brasil não pode ser igual para todos.
Não culpemos o candidato por acreditar nisso – até porque a crença é verdadeira. Tampouco deve causar surpresa a “revelação” de que o sistema legal protege os mais favorecidos; afinal, o poder econômico e o poder político no Brasil sempre viveram em simbiose. Estranho seria se quem detém esse poder aprovasse leis prejudiciais a si mesmos.
O que nos resta, portanto, é pensar nos porquês. Por que os desfavorecidos aceitam a perpetuação das injustiças? E mais do que aceitar, muitas vezes a legitimam, como poderemos comprovar no domingo pelos milhões de votos que ganhará o candidato que sabe que a palavra “justiça” para ele não tem o mesmo significado que tem para um sem-teto.
A pergunta rende possibilidades variadas de resposta, a depender da ideologia de quem retrucar. Há até quem acredite que é assim mesmo que tem que ser, e afirme a plenos pulmões o retrógrado conceito da “igualdade” que trata igualmente os desiguais, ou da “meritocracia” em que 1% da população larga com dez voltas na frente dos outros 99%.
Pretendendo, porém, fugir da ideologia, afirmemos um ponto mais pacífico: se alguém é prejudicado sempre, e não reage, grande parcela da responsabilidade recai na sua própria apatia. E essa apatia nasce da ignorância sobre sua real condição. 
A bandeira da educação é antiga, e (quase) unânime. Mas, sem prejuízo da matemática, o grande salto depende de educação para a cidadania. E por mais difícil que seja combater uma doença quando os “remédios” são receitados pelos próprios agentes infecciosos, começa a se impor o desejo da sociedade por mais participação política, por consciência plena dos seus direitos e deveres. E, apesar de todas as forças em contrário, nada é mais forte do que uma ideia cujo tempo chegou.
Como no rompimento de uma represa que já suportou pressão demais, surgem por todo o país campanhas que buscam conscientizar, mobilizar, promover a tal “educação para a cidadania” e, com o apoio da sociedade, conquistar avanços efetivos na busca da igualdade de todos perante a lei.
Gostaria de destacar apenas duas iniciativas, que ilustram muito bem um dos atuais focos de desigualdade: a injustiça fiscal, que se revela com clareza na regressividade do nosso sistema tributário.
Quanto custa o Brasil” é o tema da campanha do Sinprofaz, Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda, que tem o objetivo de “conscientizar a população brasileira sobre a urgente necessidade de mudanças no sistema tributário e levar ao Congresso Nacional propostas de reforma tributária”.
Já a campanha “Pobrepagamais” denuncia a seletividade inversa do ICMS no estado de São Paulo: além do imposto, por sua própria natureza, pesar proporcionalmente mais sobre quem tem menor renda, as alíquotas de muitos produtos básicos em São Paulo são mais altas que as de alguns produtos supérfluos. A iniciativa é do Sindicato dos Agentes Fiscais do Estado de São Paulo (SINAFRESP).  
Essas campanhas nascem do exercício da cidadania de servidores públicos que possuem muita, mas muita vontade de mudar o país. E que estão fazendo aquilo que políticos aferrados aos interesses dos grupos que se beneficiam das injustiças do sistema jamais farão: trabalhando em prol do bem comum, única razão legítima para a própria existência do Estado.
Por isso, da próxima vez que se pegar pensando, “precisamos mudar o Brasil”, pense um pouco mais: já estamos fazendo isso. O que precisamos, de verdade, é que mais gente se levante e ajude a mudar o Brasil.


segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Os melhores dias de nossas vidas


E o Rio de Janeiro sediou os jogos olímpicos.
Não houve, que surpresa!, caos urbano, blecaute, arrastão, ataque terrorista. As “arenas olímpicas” não desabaram sobre os espectadores, o vírus Zika não provocou um genocídio. No fim das contas, quem deu o maior vexame foi um norte-americano, pensando que poderia iludir com um assalto imaginário um povo tão acostumado a violência real.
Seria bom se, agora, pudéssemos dizer que o Rio de Janeiro e o Brasil “provaram” que podem promover grandes eventos. Como se já não tivéssemos realizado os Jogos Pan-Americanos de 2007, ou a Copa do Mundo de 2014. Será nossa baixa auto-estima inabalável? O próximo evento a ser organizado no Brasil também será antecedido por um festival de lamúrias, auto-imolação e profecias de tragédias? Ou desistiremos de lutar com os fatos e reconheceremos, enfim, que não somos um completo desastre?
Não que a mera ausência de catástrofes signifique que o olimpismo passou incólume pelo Rio. Dificilmente veríamos em outras paragens fatos pitorescos como um medalhista olímpico do judô (supostamente) embriagado apanhando do recepcionista de um hotel após ser (supostamente) furtado por uma prostituta, competições de atletismo terminando em peixinhos, ou torcida pelo juiz numa luta de boxe. Duvido também que Lochte tivesse coragem de contar suas fábulas para sisudos policiais japoneses, e que algum jornalista francês venha a creditar as conquistas nipônicas nos jogos de 2020 ao candomblé. Resistirá nosso complexo de vira-lata à constatação de que, além da cidade não ter explodido, estrangeiros também ficam bêbados, fazem bobagens pelas ruas, inventam histórias escabrosas e escrevem asneiras nos seus jornais?
Sinceramente, espero que não. Porque de todos os “legados” que possamos herdar dos jogos olímpicos - linhas de metrô, BRTs, escolas, quadras, referências positivas na mídia internacional – nada seria mais importante do que manter acesa uma mínima centelha de orgulho pelo que somos, e a crença de que, se o Rio de Janeiro foi o lugar mais maravilhoso do planeta por dezessete dias, ele não precisa ser e não será o pior lugar do mundo agora que a chama olímpica se apagou.
Claro que o Rio da segunda não é o Rio do domingo. Usain Bolt não corre mais no Engenho de Dentro, mas o povo precisa continuar correndo para pegar o trem. Nosso primeiro medalhista, Felipe Wu, descansa suas armas, mas na Cidade de Deus (e de Rafaela Silva) já teve tiroteio. As filas do Parque Olímpico foram transferidas para o aeroporto. Enquanto os cariocas seguem na fila do ponto de ônibus, do posto de saúde, da agência de empregos, milhares de atletas e turistas lotam aviões pra deixar a capital do melhor e do pior do Brasil, acreditando que viram o nosso melhor.
E nós ficamos para provar que eles estão enganados. Que o nosso melhor ainda está por vir.


sexta-feira, 13 de maio de 2016

Assim caminha a humanidade

No documentário “Requiem for the American Dream”, o intelectual norte-americano Noam Chosmky passeia pela história dos Estados Unidos, demonstrando, com certa melancolia, que o “sonho americano” está sucumbindo. Segundo Chomsky, aquele país das décadas de 60-70, em que um operário possuía um padrão de vida confortável, em que os filhos desses operários tinham uma boa educação, a terra que os ianques idolatravam como o berço da democracia e das oportunidades, está se tornando uma lembrança.
Chomsky acredita que a escalada da desigualdade social é responsável por ferir de morte o “sonho americano”. A concentração cada vez maior de riqueza, porém, não decorreria da incompetência dos políticos, nem de crises cíclicas do sistema, tampouco de guerras, epidemias ou outros fatores imprevisíveis. Antes, seria o resultado esperado do controle das decisões políticas por interesses hegemônicos, cuja atuação se revela nos “Dez princípios para concentração de riqueza e poder”:
1. Reduzir a democracia;
2. Moldar a ideologia – macarthismo, alguém se lembra?
3. Redesenhar a economia, privilegiando o rentismo;
4. Deslocar o fardo – aumentar a regressividade da tributação, para que os ricos contribuam proporcionalmente menos que os pobres;
5. Atacar a solidariedade;
6. Controlar os reguladores;
7. Controlar as eleições;
8. Manter a ralé na linha – criminalizar ou desacreditar movimentos populares, sindicatos, e qualquer outra força com potencial democratizante;
9. Obter consentimento para a produção – “fabricar consumidores”;
10. Marginalização do povo – incapaz de influenciar verdadeiramente as decisões políticas, a população perde a fé nas instituições e assume posições extremistas. Grupos rivais se atacam mutuamente, e as relações sociais se corroem com rapidez.
Ah, depois de ler os dez princípios, parece que ele está falando do Brasil? Pois é. Mas é ainda pior: se nos Estados Unidos a luta é para manter direitos, para preservar um “sonho”, aqui tudo concorre para perpetuar vícios que causam pesadelos desde a época colonial.
Sempre estranhei pessoas que defendem ferozmente ideologias contrárias aos seus legítimos interesses, e ainda racionalizam tais comportamentos, quase sempre recorrendo a ameaças imaginárias. Já identifiquei “n” espécimes peculiares, como o “latifundiário de 100 metros quadrados”, feliz proprietário de um apartamento de dois quartos (financiado), que nunca teve um alqueire de terra, mas morre de medo do MST e da reforma agrária; o “camelô de Wall Street”, que mal consegue pagar as contas e nem sabe o que é SELIC, IPCA, LTN, ON, PN, debêntures e dividendos, mas fica horrorizado toda vez que a bolsa de valores “cai” e o “Brasil fica mais pobre"; o “eu quero ser um milionário”, que anda de carro popular e baba de ódio quando ouve falar em impostos progressivos sobre renda e patrimônio, mas sustenta bovinamente as benesses dos magnatas suportando uma carga muito maior do que deveria em impostos indiretos.
Hoje percebo que os avaliei mal, com excessiva severidade. Assim como os habitantes da caverna de Platão, eles só podem viver no mundo que conhecem, e sua visão, desde sempre, é obscurecida por sombras habilmente tramadas. Continuariam sendo marionetes, se pudessem ao menos enxergar as próprias cordas?


terça-feira, 26 de abril de 2016

Alien versus Predador



“Em tempo de guerra, a primeira vítima é a verdade.”
Boake Carter

Há quem tema que o crescente acirramento de ânimos no país nos levará a um panorama de guerra civil. Não há mais o que temer (sem trocadilho), a guerra já começou.
Para quem duvida, vamos às evidências. Primeiro, o sepultamento da verdade. Um estudo da USP apontou que três das cinco reportagens mais compartilhadas na rede social facebook na semana do impeachment eram falsas. Não é que as pessoas não possam conferir se uma denúncia é ou não verdadeira, ou sejam preguiçosas demais para fazê-lo; simplesmente pararam de se importar.
Aceitar e reproduzir quaisquer mentiras, desde que estas ajudem o “seu” exército a avançar, reflete um padrão de conduta típico da guerra: a relativização de condutas que, em tempos de paz, seriam claramente reprováveis. Afinal, quem está lutando numa guerra não pode se dar ao luxo de respeitar princípios éticos, os dez mandamentos, ou a Declaração dos Direitos Humanos. Vale tudo, como dizia Tim Maia; só não vale dançar homem com homem nem mulher com mulher, bradam enfurecidos os combatentes perfilados à extrema direita do salão.
Mentir vale, ofender também vale. Dizer que roubou porque todo mundo rouba, está valendo. Exaltar torturador rende até aplausos; aqueles que tem vontade de aplaudir, mas sentem um pouco de vergonha, saem pela tangente com imitável estilo: o “meu lado” pode até ter homicidas, psicopatas e torturadores, mas o “lado de lá” tem muito mais, vamos fazer as contas? Eu cuspi no coleguinha (sério que isso vai virar moda?), mas só porque ele me xingou primeiro, foi ele quem começou! Ah, que falta faz um bedel pra botar todos esses malcriados pra fora!
Começamos a não perceber os limites, sinal de que estamos perigosamente próximos da destruição mútua assegurada. 
Completando a lista de evidências, toda guerra precisa de um objetivo, ou ao menos de um pretexto. A que agora assistimos (ou todos participamos?), sem dúvida, é um duelo pela tomada do poder.
Mais difícil, porém, do que perceber que há uma guerra em curso e escolher um lado para se “alistar”, é enxergar que não podem existir só dois lados. Ah, não!, a pretensa volta da Monarquia não conta como terceiro lado. Deve ser só alívio cômico pra suavizar o enredo, não pode ser sério isso.
Encurralados entre duas forças que pouco se importam com a contagem de corpos, nosso grande desafio não é vencer a guerra, mas apenas sobreviver a ela. Não é alimentar o ódio até a aniquilação total do inimigo, mas enxergar que podemos estar lutando contra os inimigos errados, pois os verdadeiros algozes não marcham do lado oposto da rua, mas assistem a tudo dos gabinetes refrigerados dos palácios.
A “ponte do futuro” não será erguida a partir de escombros e lembranças de páginas tristes da nossa história. Mas ainda podemos ter esperança de construí-la, se pararmos de jogar os tijolos uns nos outros em nome de falsos ídolos.
“Quando os ricos fazem a guerra, são sempre os pobres que morrem.”
Jean-Paul Sartre


terça-feira, 19 de abril de 2016

Por um sentido na vida


E de repente era domingo, mas não um domingo qualquer. Era um dia em que ia acontecer alguma coisa muito importante, que ia ficar pra história, e todo mundo estava falando sobre isso.
E eu, pensando que todos os dias acontecem coisas muito importantes, que qualquer dia pode ser o dia mais importante na vida de alguém, me esforcei pra ver o que tinha de tão diferente nesse domingo.
E foi um domingo de sol, mas mesmo assim muita gente passou o dia na frente da televisão, o que até aí não é tão diferente do que costumam fazer em todos os domingos.
Mas também tinha um monte de gente na rua, como não em todos os domingos. E não era carnaval, nem micareta (acho). Na verdade dava pra separar em dois montes de gente, cada lado torcendo pra uma coisa. E lá em Brasília construíram até um muro pra separar um bando do outro.
E de repente dava pra perceber que o dia era, sim, um tanto diferente.
E o domingo chegava ao fim, e as pessoas se agitavam cada vez mais. Algumas comemoravam, com algazarra e palavrões. Outras se lamentavam, com choro e mais palavrões. Nada diferente do que já vira acontecer em outros domingos, mas desta vez não parecia ser por causa do futebol.
Ah, mas com certeza, se esse domingo foi mesmo um dia assim tão importante, no dia seguinte eu sentirei a diferença.
Mas, quando saí às ruas, não percebi nada. O vendedor de flores ainda estava no sinal da esquina, como na segunda anterior, e na outra antes desta. O morador de rua ainda estava no viaduto, arrastando o mesmo cobertor surrado de sempre, buscando restos nas mesmas latas de lixo.
Mas pare, espere, pense, todas as coisas do mundo não vão mudar assim, de uma hora pra outra. Algumas coisas já devem ter mudado, outras não. É só questão de procurar.
Então procurei, porque o mundo se estende muito além do nosso quintal. No sinal da minha esquina, o vendedor de flores continuava lá. Mas, na cidade de Montes Claros/MG, o prefeito não estava mais na Prefeitura. Havia sido preso por corrupção.
E esse prefeito, no domingo, havia sido citado como exemplo de gestão, naquela coisa que todo mundo estava assistindo na tevê, e em nome dele sua esposa bradou contra a corrupção. E na segunda, ele foi preso como corrupto. É, muita coisa mudou pro prefeito, e pra mulher do prefeito, de domingo pra segunda.
E fiquei sabendo, também, que além da deputada que louvou a virtude do marido preso por corrupção, teve também um deputado que exaltou a ditadura, e homenageou um assassino e torturador. E aí outro deputado, por causa disso, ou por causa de outra coisa, ou por causa disso e também por causa de outras coisas, foi lá e cuspiu no deputado que gosta de torturador e gosta da ditadura.
Ah, e o deputado que cuspiu no deputado que gosta de torturador e gosta da ditadura, apesar de ser homem, gosta de outros homens. Não aquele gostar no sentido fraternal, cristão, mas aquele gostar proibido para menores, que só pode passar na televisão depois da meia noite (na internet pode passar o dia todo!). E parece que para algumas pessoas o fato desse deputado gostar de outros homens é mais importante do que o fato do outro gostar da ditadura e de torturadores, e cuspir nos outros (a tempo, que nojo! Sua mãe não te deu modos, menino?) é mais grave do que exaltar a tortura, o que eu achei estranho pra caramba, mas, poxa, bem que me avisaram que não seria um domingo como outro qualquer.
E de repente comecei a achar que o fato tão importante esperado para o domingo devia ser o arranca rabo desses dois, porque só se falava nisso.
E, no meio do assunto, percebi que mais uma coisa havia mudado: o monte de gente que até domingo falava coisas do tipo “se o Darth Vader é malvado isso não é desculpa pra ninguém ser malvado também”, começou a “aliviar” a apologia à tortura, porque um tal de Stalin também torturou, um tal de Che também matou.
Fiquei sem saber como eles pensam, fiquei em dúvida até se pensam mesmo, se estão tentando me enganar, ou a si próprios. Bem que me avisaram que não seria um domingo como outro qualquer!
E descobri, pra completar, que o povo que passou o dia na frente da tevê ficou horrorizado com “nossos” deputados, que não sabem nem falar, que pensam que o plenário é igreja, que exaltam a ditadura, que trocam xingamentos, empurrões e cusparadas, quando deviam estar ali resolvendo os problemas do país.
E de repente podem ter começado a pensar que “só” trocar de presidente (ah, por isso que o dia era especial, como não lembrei antes?) pode não ser assim tão importante como eles tinham pensado, porque também precisamos trocar de deputados, e tem mais de 500 deputados, e será que precisamos de tantos, e como esse pessoal que nem sabe falar direito virou deputado, e está decidindo a nossa vida em nome do evangelho quadrangular, da BR-429, do aniversário da Ana, minha neta Ana, pela memória de um torturador, ou porque a soberba procede (isso me deu câimbra nos ouvidos) a queda?
E de repente, fiquei aqui pensando que esse domingo pode mesmo ter sido muito importante.




quinta-feira, 14 de abril de 2016

Jovens demais para morrer


Em nossas breves e espaçadas experiências quase democráticas, já tivemos impeachments, renúncias, suicídios, mortes mal explicadas, poucos avanços e múltiplos recuos. Tivemos governantes depostos sob a mira de fuzis, e outros que nem precisaram ser derrubados, pois cederam ao próprio desequilíbrio. Tivemos um presidente que nunca foi, substituído por outro que, sem ter sido eleito sequer para um mandato, ficou no centro do poder por três décadas. Já tivemos quase de tudo, e ainda estamos por aqui.
Para quem já passou por tanto, não é uma mera votação com tons circenses e espetaculosos num domingo que ameaça a democracia. Antes, o fato de que o futuro de um governante será decidido num balcão de negócios, onde a virtude escasseia nos dois pólos, isto sim já é a pior das derrotas.
Um provável impeachment não será a morte da democracia, como alardeiam os defensores do atual governo, porque o que ainda não nasceu não pode morrer. Tampouco será o dia em que “tomaremos nosso país de volta dos vermelhos”, devaneio dos que marcham ao largo do pato holandês pirateado pela FIESP, pois não se pode recuperar o que nunca foi seu, nem tomar de volta de quem também jamais possuiu coisa alguma, além de uma efêmera ilusão de poder.
O que não significa, em absoluto, que não tenhamos nada a perder. Houve pequenas conquistas na nossa quase democracia, conquistas que agora se esvaem a cada dia, a cada ato de intolerância, a cada golpe baixo, a cada ferimento que sofrem as instituições.
E, para marcar tanta derrocada, eis que ergueram um muro na frente do Congresso, para que cada torcida fique de um lado, cada um tão cheio de certezas, cada um tão ávido por sentir raiva de quem está do outro lado.
E eis que ergueram esse muro, para tornar ainda mais patética e esquizofrênica a disputa pelo que resta da pilhagem, travestida de processo constitucional, luta pela democracia, embate contra a corrupção, luta de classes, ou o título pomposo mais ao gosto do freguês.
E ali estará, até domingo pelo menos, esse muro, para materializar a divisão entre os “vermelhos” e os “verde-amarelos”, e para mascarar as diferenças que realmente importam: entre os que estarão no gramado e os que estarão nos plenários, entre os que conduzem e os que são conduzidos. Entre os que tem poder de verdade e os que não tem nem nunca tiveram nada, além do direito de se indignar (nem sempre) e de sonhar.
E cada pessoa de cada lado do muro acredita de todo coração que está do lado certo, e de que vai vencer.
Não teriam pensado o mesmo os jovens que, há mais de vinte anos, saíram às ruas para derrubar outro presidente? Estariam hoje esses jovens, não mais tão jovens, pensando em quantos presidentes precisarão ser derrubados? 
Quem vencerá no domingo não será a multidão de bandeira vermelha, após 13 anos menos famintos, mas ainda sem teto, sem terra, sem país. Nem a multidão de verde-amarelo, que levanta faixas contra a corrupção ao lado de Eduardo Cunha, e quer acreditar num novo país com os mesmos atores do capítulo anterior.
O passado se repete como farsa, a caminho da tragédia. Mas talvez ainda haja tempo para escapar, se percebermos, apenas por um instante, o quanto estamos ferrados. Pena que ninguém se arrisca a levantar a cabeça, ocupados demais em discutir qual lado tem mais acusados de corrupção, quem terá sido mais incompetente, em que cenário nosso futuro será menos calamitoso.
Gostaria de acreditar, como os vermelhos, que vale a pena lutar pela ressurreição de um governo que não acreditou no próprio discurso, que trocou a esperança pelo cinismo, que se aliou ao que havia de mais retrógrado na política brasileira, e agora está sendo chamado a pagar o preço das suas escolhas. Gostaria ainda mais de crer, como os verde-amarelos, que o iminente fim desse governo iniciará uma nova era, com elevados padrões éticos, mas ainda que quisesse ser tão ingênuo, eis que vem Paulo Maluf como bastião da integridade, mudando de lado na última hora, para que nem os mais fronteiriços possam crer que um amanhã melhor está para chegar.
Sempre haverá, porém, o dia depois de amanhã. Quando a poeira baixar, quando o muro for desmontado, quando a raiva se tornar uma lembrança distante, quando os diferentes voltarem a ser percebidos como iguais, poderemos reconstruir.
Quanto tempo isso vai demorar, o quanto vamos sangrar até lá, quem poderá saber? Mas se há algo pelo qual vale a pena lutar a partir da segunda-feira, é para nos livrarmos o quanto antes dos escombros dos muros que hoje nos dividem.

P.S.: Para que os viciados em pensamento binário possam me colocar de um dos lados do estúpido muro, e xingar a vontade, complemento que, se deputado fosse, votaria contra esse atual pedido de impeachment, que para ter o mínimo de seriedade precisaria no mínimo incluir o vice-presidente, já que PT e PMDB foram cúmplices tanto nas “pedaladas” quanto no suposto uso de dinheiro de propina na campanha.


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Dez coisas que eu odeio em você


Nos últimos dias, viralizou nas redes o texto de um norte-americano que, após viver por alguns anos no Brasil, decidiu partilhar suas impressões, um tanto críticas, sobre a cultura nacional. Ele creditou a maior parte dos problemas do país aos padrões de comportamento vigentes por aqui: o “jeitinho”, a vaidade, a leniência com a corrupção, o pouco ânimo para confrontos, o vitimismo.
Como nós, brasileiros, adoramos quando falam mal de nós (só não gostamos mais disso do que de falar mal de nós mesmos, e só o que gostamos mais do que falar mal de nós mesmos é fazer isso na terceira pessoa), vieram os previsíveis aplausos para o americano. Também houve vozes dissonantes, mas de modo geral a repercussão parece ter sido mais positiva do que negativa.
Embora reconheça os méritos do autor ao produzir uma crônica que em instantes se tornou popular, e reconhecendo a importância da discussão que desencadeou (tanto que também compartilhei o texto), não compactuo com a conclusão, bem chutada, de que “nós” somos o problema. Do mesmo modo que não me alinho ao “pachequismo” de não aceitar críticas, ou de ficar eternamente jogando a culpa nos portugueses, nos holandeses, nos ianques, na revolução bolivariana. A discussão em torno desses dois pólos conduz a lugar nenhum, exceto a uma variante do enigma de Tostines: o Brasil tem problemas há séculos por causa da cultura, ou a cultura é assim porque o Brasil tem problemas há séculos?
Ora, não faz diferença nenhuma se a culpa é dos colonizadores, da família imperial, do Fidel Castro ou do Rockfeller. O português não vai voltar aqui pra consertar o que tiver estragado; mesmo porque, depois do português, tantos outros já vieram aqui para se divertir, levar nosso dinheiro, e ainda deixar uns palpites como cortesia. Quem precisa resolver a parada somos nós mesmos (de preferência, falando na primeira pessoa). E dificilmente avançaremos com vira-latismo ou autoflagelação.
Claro que não podemos ignorar as pequenas coisas, que nem são tão pequenas assim. Como seria bom um país sem furadores de fila, sem roubadores de troco, sem pilotos amadores de fórmula 1 ignorando sinais vermelhos e faixas de pedestres, sem carros estacionados em lugar proibido. Um país em que votos não fossem trocados por presentes e cargos públicos, em que não coexistissem a revolta com a corrupção alheia e a complacência com os próprios desvios. E como seria bom se pudéssemos mudar tudo isso só repetindo, dia após dia, que nossa cultura é um lixo, que precisamos ser mais educados mais respeitosos mais cidadãos etc. e tal. Mas, se “o brasileiro” não tem cidadania porque nunca foi tratado como cidadão, ou vice-versa, já não importa, pois não é crível que consigamos separar um fator do outro.
Por exemplo, a sonegação: jurídica e moralmente, é condenável? Sem dúvida. Mas não vamos reduzi-la sequer em milésimos de centavos apenas com outdoors e palavras de ordem. Enquanto persistir a falta de transparência sobre a arrecadação e uso dos serviços públicos, a percepção generalizada de corrupção e mau uso dos recursos, jamais teremos uma sociedade comprometida a pagar corretamente os próprios impostos e combater a sonegação.
Aplicando esse raciocínio a tantas outras mazelas do cotidiano, pode-se inferir que o determinante maior do comportamento que virou estereótipo do "brasileiro" não é a vaidade, nem a ganância, tampouco o coitadismo. É a desilusão.
De que adianta ser tão honesto, se ninguém mais é? Por que não jogar lixo na rua, se ela já está imunda mesmo? E daí se o empresário está sonegando, que diferença faz se o dinheiro fica com ele ou com o governo? Não lembro nem em quem votei, mas não são todos iguais?
Podemos ficar décadas, gerações, lamentando por sermos tão ineptos, ou por termos sido tão explorados. Tanto faz, o fracasso será certo em qualquer dos caminhos.
Podemos continuar falando de nós mesmos na terceira pessoa e puxando a orelha do “brasileiro” que não sabe votar, não tem educação, não exerce a própria cidadania.
Ou podemos, só pra variar um pouco, tentar outra saída: combater a desilusão.
Podemos, só pra variar, acreditar que se pararmos de jogar lixo nas ruas elas ficarão limpas. E, depois que estivermos convencidos, convencemos outras pessoas. Que um dia, de tanto insistirmos, acabarão acreditando também, e convencendo mais pessoas. Até que, como se fosse de repente, as ruas ficarão mesmo mais limpas.
Podemos, só pra variar, cultivar novas virtudes, em vez de ruminar velhos vícios.
Ou podemos continuar dando chibatadas nas próprias costas. Aliás, nas costas do “brasileiro’, esse nosso indesejável parente distante.


domingo, 14 de fevereiro de 2016

O último dos moicanos


Na era da hiperconectividade, a patologia da incontinência verbal se espalha mais rapidamente que o vírus Zika. As pessoas parecem contaminadas pelo desejo incontrolável de compartilhar suas ideias sobre tudo, mesmo quando só o que tem a dizer é “kkk” ou “Absurdo! Vergonha!”.
Mesmo acometido dia sim, outro também, pela compulsão de escrever, espero estar livre dessa epidemia. Resisto à tentação de emitir opiniões em 99% dos casos. Mas de vez em quando surge um “tema sobre o qual nunca havia pensado em escrever, mas me sinto forçado, após um surto de genuína indignação”. E, antes que 99% dos leitores se evadam, genuinamente indignados com tantas preliminares, melhor esclarecer logo que o assunto é a polêmica Uber x Taxistas, e os argumentos que pretendo discutir foram expostos neste artigo (clique se quiser seguir o link – precisa de cadastro na Folha/ Uol).
O texto chama atenção pelo currículo de quem o assina: deputado federal, ex-secretário municipal de transportes em São Paulo, enfim, o tipo de cidadão cujas ideias podem um dia se transformar em algo que sejamos obrigados a cumprir. E, sob o revelador título “Uber é concorrência ilegal e predatória”, o parlamentar expõe, em síntese, o seguinte:
1. O Uber pode provocar a extinção da categoria profissional de taxista;
2. O Uber utiliza motoristas não credenciados, e busca estabelecer regras diferenciadas para um sistema que já existe e tem normas definidas pelo Poder Público;
3. O Uber não cumpre as diretrizes (tarifas, regras e regulamentação) estabelecidas pelos governos municipais, e criou suas próprias regras, usurpando o papel das prefeituras;
4. Os motoristas do Uber não são submetidos a nenhuma avaliação, os pagamentos são feitos somente por cartão de crédito, e as tarifas são variáveis conforme a demanda;
5. Já existe um sistema regulamentado que funciona a favor do usuário, porque garante a qualidade do sistema e do preço, se houver fiscalização atuante das prefeituras (verdade, ele escreveu isto);
6. A tendência é que o monopólio, hoje estatal, passe para o Uber, com a desvantagem de que o povo elege o prefeito, mas não pode eleger quem comanda o Uber;
7. Há suspeitas de sonegação no pagamento de obrigações tributárias.
Após dividir mentalmente essas sentenças em categorias (possivelmente verdadeiras, mas irrelevantes; argumentos apresentados como contrários, mas que na verdade depõem a favor do aplicativo; e aqueles que parecem ter vindo diretamente de uma realidade paralela), estamos prontos para atacar as primárias teses da acusação.
O Uber pode extinguir os taxistas? Pode, assim como os carros prevaleceram sobre as charretes, o Netflix está fulminando as locadoras de vídeo, e a televisão reduziu os índices de natalidade. O futuro sempre chega. Mas os taxistas não serão vaporizados como os dinossauros, eles continuarão por aí, fazendo outras coisas. Alguns poderão até se cadastrar no Uber, ou inventar modelos de negócio melhores que o substituam.
Motoristas não credenciados? Carteiras de habilitação são concedidas por órgãos estatais. Talvez “credenciamento” signifique pagar uma licença, preencher formulários, alimentar a burocracia. Que, além de faminta, se ofende também com a existência de “regras diferenciadas” para um sistema já normatizado pelo poder público. 
Se essas normas públicas garantissem a satisfação da clientela, os taxistas não teriam com que se preocupar. Mas de que servem regras, controle, fiscalização, se mesmo assim o serviço “alternativo”, “clandestino”, oferecer maior utilidade aos usuários?
Seguimos nos deparando com afirmações estranhas, como o “problema” de só aceitar cartões de crédito, o que tende a aumentar a segurança nas duas pontas; tarifas variáveis conforme a demanda, verdadeiro atentado contra a economia planificada que, pensei eu, havia ruído com o Muro de Berlim; e a afronta de desafiar um modelo que já garante melhor qualidade e preço. Só os usuários que não perceberam e preferem migrar para um novo serviço, apesar de toda a perfeição do que já existia.
Precisamos concordar, todavia, que não iremos “eleger” quem comanda o Uber. Mas podemos provocar a falência desta e de qualquer outra empresa, parando de utilizar seus serviços. Aliás, também não podemos eleger de verdade o prefeito ou qualquer outro governante, porque o voto vale muito menos que a grana.
Quanto a “suspeitas de sonegação”, o mesmo raciocínio se aplica a “n” empresas, muitas bem mais que apenas “suspeitas”. No caso específico do Uber, o detalhe de aceitar pagamentos apenas com cartão de crédito inclusive dificulta a sonegação. Além disso, os motoristas pagam tanto IPVA como ICMS na compra dos veículos, enquanto os taxistas gozam de isenção desses impostos. Tentar conduzir o debate contra o Uber no campo tributário é uma aposta ousada na ignorância de todos que estão do outro lado da mesa.
Não foi, porém, a superficialidade dos argumentos que me indignou, muito menos o viés anti-Uber (aliás, nunca nem usei esse tal de Uber), mas sim o subtexto: a defesa de um modelo de Estado que tem seu fim em si mesmo. Indignação que nasce não por estar diante de uma rematada bobagem, de uma concepção anacrônica, ou de uma falácia cristalina; mas da frustração de não poder dizer que o parlamentar está errado desta vez. Pelo menos, não no mundo real.
Estivéssemos numa sala de aula, ou num clubinho de debates, esse discurso não resistiria aos mais triviais princípios da Teoria Geral do Estado: “o objetivo maior do Estado é a busca do bem comum, os controles sociais devem prezar a eficiência e a justiça”, coisas assim. Mas as decisões de verdade não acontecem na Academia. Do lado de cá dos livros, “o sistema trabalha para resolver os problemas do sistema”.
Não sei quem vencerá a queda de braço Uber x Táxi, se é que haverá vencedor; mas sei que, quando o Estado vigente é um Estado que trabalha para si mesmo, que enxerga o anseio geral por mais liberdade e autonomia como um incômodo, cuja autoridade é um valor mais importante que o bem comum, quem sai perdendo é a sociedade.
Reclamamos, com frequência, dos serviços ruins do Estado, da gestão pública perdulária, dos casos de corrupção. Discutimos, com menos frequência, o quanto os governos deveriam intervir em nossas vidas. Um novo modelo de Estado não será gerado dentro da caixa, por políticos viciados em jogar pelas velhas regras, tampouco resultará de um pensamento travado em falsas dicotomias, como se todas as opções se reduzissem a modelos de laissez faire do século XIX ou ao totalitarismo dos antigos países socialistas.
Novos modelos demandam uma forma diferente de pensar. Precisamos entender o papel ideal do Estado, definir as atribuições que o conduziriam a esse modelo ideal, e assumir nossas próprias obrigações em relação a todo o resto – porque se pretendemos aumentar nosso poder, também aumentará nossa responsabilidade.
Só então poderemos construir um Estado que, abandonando a pretensão de tudo fazer e se concentrando no que é essencial, resgate seu verdadeiro propósito: perseguir o bem comum. Que nos ajude a empreender, trabalhar e viver, e que saiba se afastar quando estivermos, por conta própria, nos virando melhor do que seria possível sob suas rédeas.
  

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O despertar da força


Quem acompanha o blog deve perceber que encaro o futuro com otimismo. Não tenho dúvidas de que hoje estamos melhor do que há cinquenta anos, e sigo acreditando que, entre tropeços e quedas, estaremos ainda melhor daqui a mais algumas décadas.
Reconheço que é difícil acreditar nisso quando um ano se encerra e os destaques das tradicionais retrospectivas são atentados terroristas, guerras, epidemias, mares de lama (tanto literais quanto metafóricos). Mas mesmo os túneis mais escuros possuem uma saída, que podemos encontrar se começarmos a seguir os sinais certos.
O problema é que estes sinais, se existem, não se mostram da mesma maneira para todos. Enxergamos o mundo pelas nossas próprias e distorcidas lentes. Mesmo assim, por vezes há sinais tão claros que não conseguimos entender porque ainda estamos parados no mesmo lugar.
O que nos impede de seguir o caminho aberto pelos estudantes de São Paulo, que tiveram suas reivindicações atendidas após ocuparem mais de duzentas escolas em resposta a um decreto de “reorganização escolar” que implicaria no fechamento de unidades e transferência de alunos?
Eles conseguiram o que reclamamos desde sempre: exercer efetivamente a democracia. Confrontados com uma decisão arbitrária do governo, que afetaria diretamente suas vidas, decidiram não aceitá-la. Lembraram-se do que a maioria de nós esquecemos, ou nunca soubemos: que a existência do Estado só se justifica se for para servir à sociedade.
Tomaram de volta o que já era deles. O decreto foi revogado. O secretário responsável pela “reorganização”, vendo frustrado o propósito de impor sua visão superior aos incômodos governados, caiu. Os alunos continuam e continuarão nas mesmas escolas.
Se derrotas tem muito a nos ensinar, podemos aprender ainda mais com as vitórias. Quais foram os motivos que levaram ao sucesso dos estudantes? Poderíamos imitá-los e nos mobilizar para influenciar outras decisões de governo e ter o mesmo êxito em campos tão diversos como o combate à corrupção, a melhor prestação de serviços públicos, a transparência e moralização da política?
Para responder, precisamos antes refletir se estamos dispostos a nos dedicar a estas batalhas como os estudantes se engajaram na luta pelas suas escolas. É provável que 99% da sociedade afirmará enfaticamente condenar a corrupção. Porém, um percentual desprezível se disporá a sair às ruas, monitorar o uso dos recursos públicos, ocupar o Congresso, enfim, a adotar atitudes efetivas para atingir o objetivo que afirmam almejar.
Comparando a luta pelas escolas e a revolta generalizada com “tudo isso que está aí”, há pelo menos uma diferença fundamental: no caso dos estudantes, havia uma demanda claramente definida, e uma projeção cristalina de como seria o futuro no caso de sucesso ou fracasso. Entre a opção de nada fazer e perderem suas escolas, ou assumirem o risco de enfrentar o governo, preferiram o enfrentamento.
Não parece assim tão complicado decidir entre uma derrota certa e a possibilidade, ainda que remota, de vitória. Mas esse quadro se torna nebuloso quando tratamos de temas genéricos, ou intangíveis.
Sonhos podem mobilizar pessoas, mas apenas se forem pintados com cores vivas o suficiente para que seja possível acreditar neles. Entre o mundo que temos e aquele que queremos há um abismo muito mais difícil de atravessar do que aquele que foi cruzado pelos estudantes paulistas para não perderem suas escolas. O que nos separa de um admirável mundo novo, porém, não é apenas o fato dele parecer estar tão longe que não conseguimos vê-lo, mas antes nossa incapacidade de crer que outro mundo é possível.
Cegos para as pontes imaginárias entre pequenas batalhas e grandes conquistas, nos refugiamos no ceticismo e na resignação. Sabemos que grandes jornadas começam com o primeiro passo, mas ninguém pretende expor os pés descalços a uma trilha de espinhos sem saber o que aguarda no final do caminho. Se pretendemos alcançar um novo lugar, precisamos antes saber exatamente para onde queremos ir.
Mas como rumar para um destino que não está marcado em nenhum mapa? Simples: o inventamos, assim como os estudantes inventaram um mundo em que suas escolas não seriam fechadas.
Precisamos construir uma nítida visão do futuro, tão clara que possamos senti-la se materializando a nossa volta pouco a pouco, em cada brasileiro que seja salvo da miséria, em cada árvore plantada, em cada palavra escrita e compartilhada, em cada sorriso de criança, em cada ato que reafirme a honestidade, em milhares de primeiros empregos, primeiros beijos e últimas esperanças.
E então nos amarramos a essa visão, tijolo por tijolo, assim como os estudantes se amarraram a suas escolas.