quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Constantine: Primeira Temporada


John Constantine é um personagem de destaque na linha adulta de quadrinhos da Detective Comics. Ocultista, demonologista, fumante inveterado, cínico e arrogante. Apesar de (ou por causa de) toda sua falta de escrúpulos e virtudes, o anti-herói arregimentou uma considerável legião de fãs. Após o sucesso de Arrow, era previsível uma enxurrada de séries inspiradas nos quadrinhos da DC, e em 2014 ela veio com Flash, Gotham e, claro, Constantine.
Infelizmente, a primeira temporada não teve o sucesso esperado, e a produção foi interrompida pela NBC após somente treze episódios. Há boatos sobre uma renovação da série na própria NBC, ou (o que parece mais provável) sua transferência para algum outro canal. Como o futuro é incerto, vamos logo ao assunto: minhas impressões sobre a primeira temporada de Constantine.
Malgrado a ameaça de cancelamento, a série não é ruim. Matt Ryan convence como John Constantine, o que ajuda muito a trama, já que todos os conflitos giram em torno do seu astro. Pena que os coadjuvantes não acompanham o ritmo. O “team Constantine”, composto pela vidente Zed (sim, ela é bem bonita!) e pelo motorista e pau-pra-toda-obra Chas (OMG they killed Kenny, er, Chas), transita apaticamente pelos episódios, a maior parte do tempo se limitando a seguir as pegadas do protagonista. Deviam saber que não é muito inteligente confiar em John Constantine :). Há raros momentos em que Zed e Chas emanam luz própria, ou entram em conflito com John; não por acaso, quando isto acontece o nível da série dá um salto. Fica até difícil avaliar o desempenho desses atores, quando a história foi tão pouco generosa com seus personagens. Para não ficar em cima do muro, acho que Charles Halford (Chas) se sai melhor do que Angélica Celaya (Zed), que pelo menos é brilhante na função de enfeitar a tela. Harold Perrineau, mais conhecido como o mala Michael de Lost, completa o elenco principal interpretando um anjo que busca a ajuda de Constantine para deter as “trevas ascendentes”. 
Essa ameaça, que seria o fio condutor do roteiro, permanece etérea ao longo de toda a temporada: não sabemos o que John precisa fazer para deter a “ascensão das trevas”, aliás, nem ele sabe, ou parece se preocupar realmente com isso. Constantine e sua trupe enfrentam as ameaças na medida em que elas aparecem, e pronto. O problema (mais um) é que Supernatural faz isso melhor há dez temporadas, com a vantagem extra de integrar melhor os episódios "avulsos" ao plot principal. 
Intensidade talvez seja a melhor palavra para definir o que faltou, até aqui, em Constantine. A boa atuação de Ryan não é suficiente para empolgar em meio a coadjuvantes apagados, um roteiro não mais que mediano, e uma atmosfera de terror light que não me pareceu a mais adequada para o personagem. O que não impediu, porém, que fossem cometidos alguns episódios muito bons. Destaco o 1.03, Feast of Friends, o 1.10, Quid pro Quo, e o derradeiro 1.13, Waiting for the man, para mim, o melhor da série. Aliás, eis algo de positivo a se dizer, que pode alimentar a esperança de uma segunda temporada: houve uma sensível melhora nos quatro episódios finais. Talvez a equipe esteja acertando a mão, e Constantine ainda seja capaz de entregar aquilo que promete. Porque a impressão que fica é que havia potencial para ser muito melhor. Que será uma pena se não virmos mais Matt Ryan como John Constantine.
Pesando tudo, daria uma nota sete para a primeira temporada de Constantine. A série patina entre o bom e o regular, o que não costuma bastar para garantir um lugar ao sol no concorridíssimo mercado televisivo norte-americano atual, pontuado por produções de altíssima qualidade (aguardem o post sobre a melhor que assisti nos últimos tempos, True Detective). Mas, para encerrar, vamos responder à pergunta que impulsiona aqueles que resolvem ler uma crítica: devo assistir à série?
Bem, se você é fã do personagem, óbvio que sim. Se não o conhece, nem costuma gostar de histórias sobrenaturais, pode passar longe. Se não é fã, mas gosta do gênero, depende da sua agenda. Se estiver em dia com Supernatural, American Horror Story e Penny Dreadful, não custa passar umas dez horinhas com John Constantine. Espero que sejam agradáveis e, ao final delas, também comece a torcer para que o mago mais sacana dos quadrinhos volte às telas, levando o inferno ao Inferno por mais algumas temporadas.
#saveconstantine



quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

A hora mais escura


Há menos de três meses, externei grandes esperanças em relação ao futuro do país. Na época, pensava haver motivos suficientes para tal otimismo. Afinal, em 2014 foram descobertos e denunciados uma série de casos de corrupção (como a máfia do ISS, a queda do “Império X”, o “petrolão”). E as denúncias, finalmente, vieram acompanhadas de prisões. Como se não bastasse, também tivemos o aniversário de um ano de cadeia dos condenados no mensalão.
Objetivamente, as coisas não parecem ter mudado muito desde então. Delatores continuam delatando, executivos entram e saem de carceragens, o homem mais rico do país na semana passada assiste à Polícia Federal apreendendo suas modestas posses. Não obstante, minhas expectativas já não são as mesmas. E o que as fez mudar, creiam, foi um comentário singelo, que encontrei reproduzido mais vezes do que seria desejável (bem, uma vez já seria mais do que o desejável), que apresenta a “solução final” para a corrupção: privatizar.
O contexto, evidentemente, é o noticiário que envolve a Petrobrás. E eu, que pensava ser óbvia a falta de correlação entre comportamento desonesto e o caráter público, ou privado, de uma instituição, constato que estava enganado e que mais uma vez o óbvio escapou aos olhos de muita gente (ok, sempre tem uma chance de 0,01% de eu me enganar). Para minorar meu equívoco, sugiro que cliquem aqui e leiam um excelente artigo sobre o comportamento desonesto, repleto de gráficos, pesquisas e referências. Aviso logo que abordarei o tema de modo bem mais simplificado.
Feito o alerta, vamos iniciar construindo uma linha de raciocínio que nos permita enfrentar a espinhosa questão proposta: como erradicar a corrupção? O primeiro passo é definir o problema. Moleza, o problema é a corrupção. O segundo passo, identificar suas causas. Por que existe corrupção? Opa, isso já não é tão fácil de responder.
A simples proposição da pergunta deve bastar para percebermos que o problema é complexo – e, como tal, não será resolvido com uma “bala de prata”. Acreditar em soluções simples para problemas complexos é, no mínimo, ingenuidade. Não nos contentemos, porém, em negar apenas que a “solução” é privatizar. Vamos além, para demonstrar que privatizar (ou estatizar, ao seu gosto) sequer arranha a solução.
Por que alguém praticaria um ato de corrupção? Visualizo um processo que envolve, no mínimo, quatro elementos: a ambição (intenção de auferir vantagem); a ausência de uma formação ética e moral que o impeça de adotar um comportamento reprovável para auferir essa vantagem (às vezes o vazio moral é tão profundo que o agente sequer reconhece que o comportamento é condenável); a avaliação de que os benefícios superam os riscos (no popular, a confiança na impunidade); e, por fim, a oportunidade.
Os dois primeiros elementos são subjetivos, e com certeza privatizar ou estatizar empresas não tornará as pessoas menos gananciosas, tampouco modificará os valores morais delas.
No quesito impunidade, os riscos tendem a diminuir quando retiramos o poder público da equação. Não há legislação adequada no Brasil para atos de corrupção exclusivamente privados; quando há lei, as penas são menores do que nos casos de corrupção pública; as empresas privadas não estão sujeitas aos mesmos controles das públicas; etc. etc. e se duvida, ou, pior, “não sabia” que existe (muita) corrupção no setor privado, leia isto e pelo menos um pouco disto.
Analisando o último elemento, oportunidade, e tomando como exemplo justamente a Petrobrás, de que modo privatizá-la reduziria as chances de atos ilícitos? A empresa continuaria contratando obras, vendendo serviços e assumindo obrigações, tanto com particulares quanto com o poder público. Ser pública, privada ou de economia mista afeta o fórum em que futuros desvios são julgados; mas dificilmente impediria um diretor inescrupuloso de pedir propina ao empreiteiro. Aliás, não custa lembrar que as empreiteiras que ocupam o outro pólo da “lava-jato” são todas empresas privadas.
“Ah, mas a corrupção em empresa particular é diferente. Lá podem até roubar, nem me importo, porque o dinheiro é deles. Numa empresa pública, estão metendo a mão no meu dinheiro!”
Bem, o seu dinheiro devia estar num banco, ou debaixo do colchão. Imagino que o interpelante queira se referir aos recursos públicos, que provém das mais diversas fontes, uma das quais, os tributos que somos compelidos a pagar. Sabem de onde não vem os recursos esperados? De empresas que sonegam impostos, chegando até (segundo as más línguas) a contribuir generosamente com agentes públicos ou políticos para que estes não vejam seus ilícitos, ou, melhor ainda, imponham leis em seu benefício, tornando lícito o que deveria ser ilícito.
Agora, se quisermos falar do nosso dinheiro mesmo, aquele que podemos gastar livremente, um ambiente de negócios corrupto tem como conseqüência direta o aumento dos preços dos produtos que consumimos. Não acreditam? Não leram o relatório de 150 páginas da Transparência Internacional? Tem um resumo aqui.
Enfim, apenas para deixar claro que estamos falando de uma coisa, e não de outra: quem entende que o Estado não é o agente mais apropriado para explorar petróleo, ou emprestar dinheiro, ou operar estradas, e deveria se ocupar de atividades mais propícias ao bem comum (como saúde, educação, segurança), ótimo. Que alinhe seus melhores argumentos e defenda as privatizações. Mas não sejamos tolos ao ponto de acreditar que privatizar é um remédio contra a corrupção. Que basta parar a música, trocar as pessoas sentadas nas cadeiras, e vislumbrar um pôr do sol reluzente. Não, desta vez precisamos derrubar as cadeiras.
Mas se isso parecer difícil demais, se preferirem continuar exercendo o direito inalienável de se iludirem com não-soluções fáceis, por favor, pelo menos pensem um pouco antes de verbalizar semelhantes tolices. Porque quero continuar acreditando que, se as velhas estruturas um dia caírem, seremos capazes de construir alguma coisa melhor no lugar. Que não nos deixaremos enganar com uma mera troca de atores, a serviço dos mesmos interesses de sempre. Que nos cansamos de ver o futuro repetir o passado.

E para encerrar, lembrando que estamos, de algum modo, tratando da Petrobrás, a trilha sonora é em homenagem à situação atual da empresa. Bom carnaval!



sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O Livro da Selva


AVISO: o texto a seguir é uma combinação descoordenada 
de devaneios, carentes de fundamentação científica respeitável. 
O assunto provavelmente já foi filosofado por algum sacana
que nasceu séculos antes de mim só para roubar minhas ideias. 
Porém, se não tiver nada melhor para fazer e insistir na leitura, 
a parte boa é que não usarei palavras difíceis nem elucubrações 
metafísicas para tornar as coisas mais complicadas do que já são.

A pequena parte útil do meu cérebro costuma emitir zumbidos irritantes de alerta toda vez que identifica a expressão “natureza humana” em uma frase. Por um longo longo tempo segui a vida sem ter a mínima noção do motivo pelo qual isso me incomodava. Afinal, sempre há algo mais importante em que se pensar, e todos aprendemos a viver com pequenos desconfortos.
Mas chega um dia em que o incômodo vence a preguiça. De tanto ouvir “a natureza humana é egoísta”, “não existe isso de natureza humana”, “o ser humano é bom, o mundo que é mal”, e aproveitando que minhas séries favoritas e o futebol brasileiro estavam em férias, me pus a refletir sobre o assunto.
O primeiro passo: fazer o máximo de esforço para esquecer todas as besteiras que fizeram minhas sinapses estalarem e começar do zero. Será que existe essa tal natureza humana? Mas eu nem sei o que é isso. E, se não sei o que é, não vou reconhecê-la quando a vir. Então, precisamos voltar mais um pouco e começar do menos um: o que seria a “natureza humana”?
Bem, a natureza de uma coisa é aquilo que faz a coisa ser o que é. O que nos permite diferenciá-la das outras coisas diferentes dela. Logo, a natureza humana seria a(s) característica(s) essencial(is) de um ser humano. Aquilo que nos permite saber que no ponto “A” estamos olhando para um homem, que resplandece natureza humana, no ponto “B” para um símio, que exibe sua natureza simiesca, e no ponto “C” para uma galinha com sua natureza galinácea.
Logo, a natureza humana deve ser algo que está presente nos seres humanos, apenas neles, e em nenhuma outra espécie; e mais, algo que todos os seres humanos tenham, obrigatoriamente, em comum.
Uma vez que atinei com essa definição, percebi por que os debates tradicionais sobre natureza humana me aborrecem: pela tentativa de associar o conceito a padrões de comportamento, a instintos, ou, pior, a uma espécie de predestinação biológica. Posso não saber o que a natureza humana é, mas todas essas relações me parecem mais adequadas para demonstrar o que ela não é.
A natureza humana não pode ser “instinto”, simplesmente porque todos os animais tem instintos. Até nossa preferência por viver em sociedade, rituais de afirmação, ciclos de amadurecimento, encontram paralelos em outras espécies. A presença de instintos naturais prova, sim, que não nascemos “zerados”, mas nada esclarece sobre a natureza humana.
A qual não é, tampouco, “padrão de comportamento”. Aliás, nada há de mais típico no comportamento humano do que a variabilidade. Encontramos lado a lado nos jornais notícias sobre escândalos bilionários de corrupção e catadores de lixo devolvendo malas de dinheiro (quem será que perde todas essas malas de dinheiro, aliás?). O padrão é justamente a falta de padrões.
“Espera um pouco aí. O ponto é que o termo natureza humana tem sido usado, há bastante tempo, com esse sentido, de características que seriam comuns aos seres humanos, e não com esse outro de essencialidade que você inventou (ou copiou de algum fóssil).”
Exato, esse é o ponto, contestar a definição de natureza humana como "traço de comportamento invariável". Porque é uma classificação imprecisa, inadequada, nociva.
Sim, nociva, porque as palavras tem poder. E o poder da "natureza" tem sido usado para fortalecer, por exemplo, o discurso da “predestinação”. A velha história de “não podemos fazer nada, a natureza humana é assim mesmo”. Essa desculpa é tão furada que serve igualmente a vários propósitos: se você é mesquinho e ganancioso, não é sua culpa, a “natureza humana” é que é egoísta. Mas se você é compassivo, solidário, daqueles que sente um aperto no coração quando vê moradores de rua com frio e cachorrinhos famintos, está expressando a bondade natural do ser humano. Nascemos angelicais. O mundo é que é ruim, que nos obriga a fazer coisas que não queríamos, a fechar os olhos para as injustiças. Só não consigo entender uma coisa: se somos naturalmente bons, de onde viria toda a maldade?
“Ah, mas então a presença de injustiças prova que a natureza humana é má e egoísta mesmo.”
Não, besta. E não é, se não por qualquer outro motivo, simplesmente porque o egoísmo é um comportamento observado também em outras espécies. Então, mesmo que sejamos egoístas “de berço” (o que é bastante discutível), isso não é a “natureza humana”. É só mais um instinto primitivo que falhamos em controlar.
Para que serve, então, proclamar que nascemos de um ou de outro jeito, que somos ou deixamos de ser isso ou aquilo? Talvez para nos convencer de que há coisas que não podem ser mudadas. Que construir um amanhã que realmente mereça esse nome está além de nossas forças.
Talvez esteja mesmo. Mas, entre a realidade sombria em que vivemos e uma impossibilidade luminosa, escolho acreditar no impossível. Por isso, quando escutar de novo que "a culpa é da natureza humana”, já sei como calar o zumbido. A natureza, para quem se interessar, passa no Discovery Channel. Vamos usar o nome certo: escolhas. São elas, somente elas, que definem nossas vidas e transformam este mundo. Se somos mesquinhos, gananciosos, individualistas, nada de colocar a culpa na “natureza humana” nem no “mundo cruel e selvagem”. Estamos por aqui há mais de cinco milhões de anos. Temos idade suficiente para assumir a responsabilidade pelos nossos atos e, quem sabe, arrumar pelo menos um pouco da bagunça que largamos pelo caminho. A menos que alguém ainda acredite que a culpa é toda da serpente.

(Se o vídeo abaixo não estiver aparecendo no seu navegador clique aqui para a trilha sonora.)