sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Dez coisas que eu odeio em você


Nos últimos dias, viralizou nas redes o texto de um norte-americano que, após viver por alguns anos no Brasil, decidiu partilhar suas impressões, um tanto críticas, sobre a cultura nacional. Ele creditou a maior parte dos problemas do país aos padrões de comportamento vigentes por aqui: o “jeitinho”, a vaidade, a leniência com a corrupção, o pouco ânimo para confrontos, o vitimismo.
Como nós, brasileiros, adoramos quando falam mal de nós (só não gostamos mais disso do que de falar mal de nós mesmos, e só o que gostamos mais do que falar mal de nós mesmos é fazer isso na terceira pessoa), vieram os previsíveis aplausos para o americano. Também houve vozes dissonantes, mas de modo geral a repercussão parece ter sido mais positiva do que negativa.
Embora reconheça os méritos do autor ao produzir uma crônica que em instantes se tornou popular, e reconhecendo a importância da discussão que desencadeou (tanto que também compartilhei o texto), não compactuo com a conclusão, bem chutada, de que “nós” somos o problema. Do mesmo modo que não me alinho ao “pachequismo” de não aceitar críticas, ou de ficar eternamente jogando a culpa nos portugueses, nos holandeses, nos ianques, na revolução bolivariana. A discussão em torno desses dois pólos conduz a lugar nenhum, exceto a uma variante do enigma de Tostines: o Brasil tem problemas há séculos por causa da cultura, ou a cultura é assim porque o Brasil tem problemas há séculos?
Ora, não faz diferença nenhuma se a culpa é dos colonizadores, da família imperial, do Fidel Castro ou do Rockfeller. O português não vai voltar aqui pra consertar o que tiver estragado; mesmo porque, depois do português, tantos outros já vieram aqui para se divertir, levar nosso dinheiro, e ainda deixar uns palpites como cortesia. Quem precisa resolver a parada somos nós mesmos (de preferência, falando na primeira pessoa). E dificilmente avançaremos com vira-latismo ou autoflagelação.
Claro que não podemos ignorar as pequenas coisas, que nem são tão pequenas assim. Como seria bom um país sem furadores de fila, sem roubadores de troco, sem pilotos amadores de fórmula 1 ignorando sinais vermelhos e faixas de pedestres, sem carros estacionados em lugar proibido. Um país em que votos não fossem trocados por presentes e cargos públicos, em que não coexistissem a revolta com a corrupção alheia e a complacência com os próprios desvios. E como seria bom se pudéssemos mudar tudo isso só repetindo, dia após dia, que nossa cultura é um lixo, que precisamos ser mais educados mais respeitosos mais cidadãos etc. e tal. Mas, se “o brasileiro” não tem cidadania porque nunca foi tratado como cidadão, ou vice-versa, já não importa, pois não é crível que consigamos separar um fator do outro.
Por exemplo, a sonegação: jurídica e moralmente, é condenável? Sem dúvida. Mas não vamos reduzi-la sequer em milésimos de centavos apenas com outdoors e palavras de ordem. Enquanto persistir a falta de transparência sobre a arrecadação e uso dos serviços públicos, a percepção generalizada de corrupção e mau uso dos recursos, jamais teremos uma sociedade comprometida a pagar corretamente os próprios impostos e combater a sonegação.
Aplicando esse raciocínio a tantas outras mazelas do cotidiano, pode-se inferir que o determinante maior do comportamento que virou estereótipo do "brasileiro" não é a vaidade, nem a ganância, tampouco o coitadismo. É a desilusão.
De que adianta ser tão honesto, se ninguém mais é? Por que não jogar lixo na rua, se ela já está imunda mesmo? E daí se o empresário está sonegando, que diferença faz se o dinheiro fica com ele ou com o governo? Não lembro nem em quem votei, mas não são todos iguais?
Podemos ficar décadas, gerações, lamentando por sermos tão ineptos, ou por termos sido tão explorados. Tanto faz, o fracasso será certo em qualquer dos caminhos.
Podemos continuar falando de nós mesmos na terceira pessoa e puxando a orelha do “brasileiro” que não sabe votar, não tem educação, não exerce a própria cidadania.
Ou podemos, só pra variar um pouco, tentar outra saída: combater a desilusão.
Podemos, só pra variar, acreditar que se pararmos de jogar lixo nas ruas elas ficarão limpas. E, depois que estivermos convencidos, convencemos outras pessoas. Que um dia, de tanto insistirmos, acabarão acreditando também, e convencendo mais pessoas. Até que, como se fosse de repente, as ruas ficarão mesmo mais limpas.
Podemos, só pra variar, cultivar novas virtudes, em vez de ruminar velhos vícios.
Ou podemos continuar dando chibatadas nas próprias costas. Aliás, nas costas do “brasileiro’, esse nosso indesejável parente distante.


domingo, 14 de fevereiro de 2016

O último dos moicanos


Na era da hiperconectividade, a patologia da incontinência verbal se espalha mais rapidamente que o vírus Zika. As pessoas parecem contaminadas pelo desejo incontrolável de compartilhar suas ideias sobre tudo, mesmo quando só o que tem a dizer é “kkk” ou “Absurdo! Vergonha!”.
Mesmo acometido dia sim, outro também, pela compulsão de escrever, espero estar livre dessa epidemia. Resisto à tentação de emitir opiniões em 99% dos casos. Mas de vez em quando surge um “tema sobre o qual nunca havia pensado em escrever, mas me sinto forçado, após um surto de genuína indignação”. E, antes que 99% dos leitores se evadam, genuinamente indignados com tantas preliminares, melhor esclarecer logo que o assunto é a polêmica Uber x Taxistas, e os argumentos que pretendo discutir foram expostos neste artigo (clique se quiser seguir o link – precisa de cadastro na Folha/ Uol).
O texto chama atenção pelo currículo de quem o assina: deputado federal, ex-secretário municipal de transportes em São Paulo, enfim, o tipo de cidadão cujas ideias podem um dia se transformar em algo que sejamos obrigados a cumprir. E, sob o revelador título “Uber é concorrência ilegal e predatória”, o parlamentar expõe, em síntese, o seguinte:
1. O Uber pode provocar a extinção da categoria profissional de taxista;
2. O Uber utiliza motoristas não credenciados, e busca estabelecer regras diferenciadas para um sistema que já existe e tem normas definidas pelo Poder Público;
3. O Uber não cumpre as diretrizes (tarifas, regras e regulamentação) estabelecidas pelos governos municipais, e criou suas próprias regras, usurpando o papel das prefeituras;
4. Os motoristas do Uber não são submetidos a nenhuma avaliação, os pagamentos são feitos somente por cartão de crédito, e as tarifas são variáveis conforme a demanda;
5. Já existe um sistema regulamentado que funciona a favor do usuário, porque garante a qualidade do sistema e do preço, se houver fiscalização atuante das prefeituras (verdade, ele escreveu isto);
6. A tendência é que o monopólio, hoje estatal, passe para o Uber, com a desvantagem de que o povo elege o prefeito, mas não pode eleger quem comanda o Uber;
7. Há suspeitas de sonegação no pagamento de obrigações tributárias.
Após dividir mentalmente essas sentenças em categorias (possivelmente verdadeiras, mas irrelevantes; argumentos apresentados como contrários, mas que na verdade depõem a favor do aplicativo; e aqueles que parecem ter vindo diretamente de uma realidade paralela), estamos prontos para atacar as primárias teses da acusação.
O Uber pode extinguir os taxistas? Pode, assim como os carros prevaleceram sobre as charretes, o Netflix está fulminando as locadoras de vídeo, e a televisão reduziu os índices de natalidade. O futuro sempre chega. Mas os taxistas não serão vaporizados como os dinossauros, eles continuarão por aí, fazendo outras coisas. Alguns poderão até se cadastrar no Uber, ou inventar modelos de negócio melhores que o substituam.
Motoristas não credenciados? Carteiras de habilitação são concedidas por órgãos estatais. Talvez “credenciamento” signifique pagar uma licença, preencher formulários, alimentar a burocracia. Que, além de faminta, se ofende também com a existência de “regras diferenciadas” para um sistema já normatizado pelo poder público. 
Se essas normas públicas garantissem a satisfação da clientela, os taxistas não teriam com que se preocupar. Mas de que servem regras, controle, fiscalização, se mesmo assim o serviço “alternativo”, “clandestino”, oferecer maior utilidade aos usuários?
Seguimos nos deparando com afirmações estranhas, como o “problema” de só aceitar cartões de crédito, o que tende a aumentar a segurança nas duas pontas; tarifas variáveis conforme a demanda, verdadeiro atentado contra a economia planificada que, pensei eu, havia ruído com o Muro de Berlim; e a afronta de desafiar um modelo que já garante melhor qualidade e preço. Só os usuários que não perceberam e preferem migrar para um novo serviço, apesar de toda a perfeição do que já existia.
Precisamos concordar, todavia, que não iremos “eleger” quem comanda o Uber. Mas podemos provocar a falência desta e de qualquer outra empresa, parando de utilizar seus serviços. Aliás, também não podemos eleger de verdade o prefeito ou qualquer outro governante, porque o voto vale muito menos que a grana.
Quanto a “suspeitas de sonegação”, o mesmo raciocínio se aplica a “n” empresas, muitas bem mais que apenas “suspeitas”. No caso específico do Uber, o detalhe de aceitar pagamentos apenas com cartão de crédito inclusive dificulta a sonegação. Além disso, os motoristas pagam tanto IPVA como ICMS na compra dos veículos, enquanto os taxistas gozam de isenção desses impostos. Tentar conduzir o debate contra o Uber no campo tributário é uma aposta ousada na ignorância de todos que estão do outro lado da mesa.
Não foi, porém, a superficialidade dos argumentos que me indignou, muito menos o viés anti-Uber (aliás, nunca nem usei esse tal de Uber), mas sim o subtexto: a defesa de um modelo de Estado que tem seu fim em si mesmo. Indignação que nasce não por estar diante de uma rematada bobagem, de uma concepção anacrônica, ou de uma falácia cristalina; mas da frustração de não poder dizer que o parlamentar está errado desta vez. Pelo menos, não no mundo real.
Estivéssemos numa sala de aula, ou num clubinho de debates, esse discurso não resistiria aos mais triviais princípios da Teoria Geral do Estado: “o objetivo maior do Estado é a busca do bem comum, os controles sociais devem prezar a eficiência e a justiça”, coisas assim. Mas as decisões de verdade não acontecem na Academia. Do lado de cá dos livros, “o sistema trabalha para resolver os problemas do sistema”.
Não sei quem vencerá a queda de braço Uber x Táxi, se é que haverá vencedor; mas sei que, quando o Estado vigente é um Estado que trabalha para si mesmo, que enxerga o anseio geral por mais liberdade e autonomia como um incômodo, cuja autoridade é um valor mais importante que o bem comum, quem sai perdendo é a sociedade.
Reclamamos, com frequência, dos serviços ruins do Estado, da gestão pública perdulária, dos casos de corrupção. Discutimos, com menos frequência, o quanto os governos deveriam intervir em nossas vidas. Um novo modelo de Estado não será gerado dentro da caixa, por políticos viciados em jogar pelas velhas regras, tampouco resultará de um pensamento travado em falsas dicotomias, como se todas as opções se reduzissem a modelos de laissez faire do século XIX ou ao totalitarismo dos antigos países socialistas.
Novos modelos demandam uma forma diferente de pensar. Precisamos entender o papel ideal do Estado, definir as atribuições que o conduziriam a esse modelo ideal, e assumir nossas próprias obrigações em relação a todo o resto – porque se pretendemos aumentar nosso poder, também aumentará nossa responsabilidade.
Só então poderemos construir um Estado que, abandonando a pretensão de tudo fazer e se concentrando no que é essencial, resgate seu verdadeiro propósito: perseguir o bem comum. Que nos ajude a empreender, trabalhar e viver, e que saiba se afastar quando estivermos, por conta própria, nos virando melhor do que seria possível sob suas rédeas.