sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Operação Tempestade no Deserto


Eis que, num dia cinzento e particularmente sem graça, me sinto compelido a escrever sobre uma tragédia em potencial. Tarde demais, reconheço: a essa altura até o governador deve estar sabendo que São Paulo está contando os dias para se candidatar a cenário do remake de Lawrence da Arábia.
Não demorei tanto a abordar o tema por ignorá-lo; de fato não sei patavina sobre gestão de recursos hídricos, mas imagino que não seja nada de muito complicado. Se fosse, não teriam aparecido tantos catedráticos de uma hora pra outra. Ou talvez isso se deva a extraordinária capacidade de aprendizado do brasileiro. Se na Copa todos viram técnicos de futebol, é natural que num tempo de águas escassas pululem especialistas em engenharia ambiental, desenvolvimento sustentável, regimes fluviais, pluviais, aluviais, e o ©@®α£≠J. Apareceu até psicólogo amador diagnosticando “stress hídrico”.
Eu, porém, não tinha o que dizer mesmo. Até pensei em algumas piadinhas, mas relutei em brincar com tema tão delicado. Ainda mais em tempos particularmente perigosos para os humoristas (e o pior nem é ser fuzilado, mas ficar levando esporro do Papa depois de morto).
Claro que nem todos compartilham dos meus receios e escrúpulos. E, num claro contra-ataque ao monte de leigos que se aventurou a dar palpite sobre gestão hídrica, o presidente da Sabesp resolveu atacar de comediante. Concluí que não tenho a capacidade de superá-lo, então pego emprestadas suas pérolas, com os devidos créditos. Infelizmente não resisti à tentação de tecer comentários, espero que eles não estraguem as piadas.
“Se for necessário chamar isso de racionamento, que assim seja. O relevante é impedir que ações na Justiça, de proteção a supostos direitos individuais, atentem contra a segurança hídrica de todos.”
A coisa anda tão feia que até os rios estão sendo assaltados. E eu aqui pensando que a “segurança hídrica” estava ameaçada porque a empresa que devia cuidar disso vacilou. Que nada, a culpa é das pessoas que futuramente, quem sabe, poderão entrar na justiça contra a companhia cobrando que ela faça aquilo que assumiu a obrigação de fazer. E o “relevante” não é buscar formas de resolver o problema, mas impedir que surjam essas inconvenientes reclamações.
"O evento do ano passado, do ponto de vista hidrológico, foi imprevisível."
Esse cidadão deve ter passado os últimos doze anos em retiro espiritual, pois desde 2003 já havia alertas sobre o risco de uma pane no sistema hídrico paulista. O que foi previsto não pode ser imprevisível. Isso é tão lógico quanto hidrológico. (Que trocadilho infame, tem certeza que vai deixar isso aí?)
"Nenhum administrador público de qualquer nível seria considerado prudente se fizesse um sobreinvestimento tão grande para enfrentar algo que nunca tinha sido enfrentado."
Acho que ele quis dizer que, se não acontecer nada de errado, tudo fica bem. Mas, se der alguma merda, é melhor chamar outro. E eu pensando que para administrar precisava ter a capacidade de planejar, prever cenários, enfrentar problemas. Se basta agir no automático e depois botar a culpa no mundo, qualquer idiota pode se candidatar ao cargo. Será que pagam bem?
"São Pedro tem errado a pontaria, tem chovido, mas não onde deve chover."
Essa passou dos limites. Só espero que semelhante blasfêmia não chegue ao conhecimento do Vaticano, já temos problemas demais.
E, depois de chegar ao fim da matéria em que foram expostos tão brilhantes argumentos, percebi que não precisava ler mais nada. Até porque, no fim das contas, me debruçar sobre um monte de artigos, entrevistas, gráficos de distribuição de chuvas, índices pluviométricos, projeções e simulações, não diminuiu em nada minha ignorância sobre o assunto. Somente após as sábias palavras do presidente da Sabesp, e levando em conta ainda o histórico de declarações do eminente governador, foi que atinei com a única solução possível para o problema a essa altura dos acontecimentos. Não me agradeçam, o mérito é todo da banda:


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A última Grande Guerra


Nove dias, doze corpos e cinco milhões de exemplares vendidos não foram o bastante para que parassem de disparar tiros contra o Charlie Hebdo.
A segunda onda de ataques foi tangencial, sorrateira, ao ponto de se negar como ataque. Refiro-me, claro, à tentativa de desviar o debate, que poderia ser sobre a violência como forma de imposição da “verdade”, sobre um mundo que cultiva fanáticos capazes de matar pessoas por causa de um desenho, ou até mesmo sobre os limites da nossa tolerância com a barbárie justificada pela “fé”. Mas nunca sobre os “limites da liberdade de expressão”.
Como a segunda onda já foi tema do artigo anterior, vamos ao seu desdobramento. A terceira onda jogou fora o disfarce de elucubração teórica que sua antecessora vestia e mirou diretamente na desconstrução da imagem das vítimas. Não que eles merecessem ser assassinados, claro, mas o semanário era racista, xenofóbico e ofensivo. Além disso, o que esses cartunistas vagabundos fizeram para virarem mártires da liberdade de expressão?
Levar uma vida nobre e virtuosa não é pré-requisito para se tornar mártir. Ser morto é.
Talvez nesse momento caiba a explicação de que essa divisão em “ondas” não guarda relação necessária com a cronologia, mas apenas com a minha percepção das reações do público. Ou talvez essa explicação seja desnecessária. Sei lá.
Voltando ao que (não) interessa: a terceira onda, em si, é natimorta. Já nasceu agonizante, encurralada entre a vergonha do que ela própria pretendia dizer e a absoluta impossibilidade de trazer os mortos de volta à vida para poder achincalhá-los com mais propriedade. Surge, então, a quarta e última onda que identifiquei: a “amenização” da tragédia. Lamento, mataram doze pessoas. Mas há tanta coisa pior acontecendo pelo mundo. Por que tanta comoção em torno desse caso específico?
O argumento mais divulgado pelos adeptos da quarta onda é a comparação entre o número de mortos na revista francesa e os produzidos pelo grupo extremista Boko Haram na Nigéria. De fato, se formos contar cadáveres, o massacre do Charlie Hebdo é numericamente insignificante comparado com o da Nigéria, que é numericamente insignificante comparado com a Guerra da Bósnia, que não chegou aos pés de uma única frente de batalha das Cruzadas.
É evidente, portanto, que tanto a repercussão pública como o modo com que cada evento nos impacta pessoalmente não depende só de números. Um assassinato na porta do seu prédio certamente chamará mais sua atenção do que uma dúzia de homicídios na Tailândia. Dois mil mortos na Nigéria hoje nos incomodam mais do que os milhões caídos durante as Cruzadas, há mais de quinhentos anos. Tempo, espaço, identidade cultural, grau de exposição na mídia. Uma infinidade de fatores afeta nossa visão dos fatos. Especificamente sobre Boko Haram x Charlie Hebdo, recomendo a seguinte matéria: “Por que nos mobilizamos pela França, mas nos esquecemos da Nigéria?”.
Feita a recomendação, é claro que se resolvi escrever este artigo e o conduzi até aqui é porque acredito ter algo a acrescentar. Há um elemento crucial que diferencia o ataque à revista do massacre na Nigéria, do conflito sino-palestino, e de qualquer outra guerra religiosa.
Escrevi, na coluna anterior, que meus deuses eram os Vingadores e os Jedi. Imagino que ninguém tenha pensado que faço orações para o Thor (o que até faria sentido, já que ele é um deus mesmo!) ou para Luke Skywalker. Os leitores podem ter imaginado, talvez, que prefiro cinemas a igrejas. Refletindo um pouco além, talvez encontrassem o significado de um tempo em que preferimos cinemas (ou livros, quadrinhos, séries de TV) a igrejas. Ou, pelo menos, um dos possíveis significados: a mídia de massa é a “religião” do século XXI. Para ser mais preciso, a cultura popular, disseminada pelos meios de comunicação de massa, desempenha com grande eficiência um papel que no passado era predominantemente das religiões: manter nossas mentes ocupadas com fantasias, fábulas, mitos, parábolas, enfim, com qualquer coisa que não seja o mundo real. Não importa se uma vende Luke Skywalker x Darth Vader, e a outra, Deus x O Diabo; pensar em Guerra nas Estrelas ou em Sodoma e Gomorra se equivalem no essencial, que é o “não pensar” na realidade.
O impacto das comunicações de massa e a ameaça que elas podem representar às religiões já foram percebidos há décadas pelas Igrejas. O templo do século XXI é o site na Internet, a emissora de rádio, o canal de televisão, a rede social. Já que é impossível combater a disseminação dos meios de comunicação, vamos ocupá-los com a Palavra.
Foi aí que pensei: se aqueles malucos tivessem dinheiro para comprar um jornal ou uma rede de televisão, provavelmente não metralhariam a Charlie Hebdo. Como as economias deles só foram suficientes para meia dúzia de armas, precisaram combater ideias com balas. E só então percebi a peculiaridade do atentado à (racista, não-é-racista-porra-nenhuma, xenofóbica, de-jeito-nenhum, islamofóbica, você-que-é, de mau gosto, vsf-você-nem-sabia-que-existia-essa-porra-de-revista-antes-do-ataque) revista francesa: eles não foram até lá para matar pessoas. Não foram até lá para “vingar” o profeta, ainda que pudessem de fato acreditar que o propósito fosse esse, assim como acreditavam que seriam recebidos por dezenas de virgens no paraíso.
Eles foram à Charlie Hebdo para dizer que a verdade que eles professam não admite contraditório. Para ensinar que quem pensa diferente deles deve se calar. Que, a cada derrota que sofrerem na batalha das ideias, cobrarão o preço em sangue.
Por isso, repito: não é sobre “limites da liberdade da expressão”. Não é sobre “respeito a crença alheia”. Não é sequer sobre preconceito ou intolerância. É sobre racionalidade x loucura. Canetas x metralhadoras. Ceticismo x dogmatismo. É mais uma face do conflito entre o futuro com que sonhamos, no mínimo, desde o Renascimento, e um passado de trevas, ignorância e destruição sem sentido que se recusa a morrer.
Pensei em concluir dizendo que, por tudo isso, eu sou Charlie, sim. Mas a verdade é que, daqui a algumas semanas, as lembranças dos eventos de sete de janeiro começarão a desvanecer. Merecerão alguns minutos nas retrospectivas de 2015, talvez notas de rodapé nos livros de história, até que se tornarão uma curiosidade do passado.
Melhor dizer que sou humano. E fazer o que posso para que, a cada dia, mais e mais pessoas digam o mesmo, antes de se afirmarem católicas, evangélicas, judias, islâmicas, xintoístas, sunitas, xiitas. Que se reconheçam pelo que tem de comum, e não por diferenças imaginárias. E, se isso não for suficiente para que desistam de se matar, que pelo menos arrumem desculpas melhores do que a defesa de suas crenças. Porque, não sei quanto a vocês, mas eu jamais seguiria um pregador que empunhasse uma kalashnikov.


segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Você é um bom homem, Charlie Brown!


“Je suis Charlie” é o primeiro candidato a meme do verão. Não sou fã de memes, mas reconheço que nesse caso pelo menos a motivação é nobre: solidariedade aos mortos no ataque à revista francesa e defesa da liberdade de expressão.
Mas, como é bonito ser do contra, logo surgiu a turma do “Je ne suis pas Charlie”. Claro que os “não-Charlie” não apoiam o ataque, como poderiam? Estão apenas tentando “ampliar o debate”, compreender as “motivações”. O humor do “Charlie Hebdo” seria de mau gosto. Ofenderia os islâmicos. Há um contexto de xenofobia e islamofobia na sociedade francesa, que ajuda a incendiar os ânimos. E de repente, antes que os cadáveres esfriem, nos deparamos com mesas-redondas sobre os limites da liberdade de expressão.
Até concordo que esse tema tenha sua importância, em outro contexto. No caso do ataque, a questão não é essa. E não é essa simplesmente porque não há cenário possível em que uma sátira mereça ser respondida com rajadas de metralhadoras. Se chegamos ao ponto em que isso acontece, e ainda estamos procurando justificativas, há algo de profundamente errado com o mundo. E, mesmo admitindo que todos possam ter sua parcela de culpa, vou correr o risco de afirmar que os mais problemáticos são os caras que disparam metralhadoras ou amarram bombas nos próprios corpos.
Num outro mundo, talvez essa tragédia, mais essa, nos levasse a refletir sobre até que ponto as pessoas podem chegar para defender os mitos e fábulas em que acreditam. No nosso mundo essa pergunta é tola, já sabemos que não há limite. Matamos e morremos por nada há séculos. Se podemos matar e morrer por Deus, Alá, Vishnu, Xenu ou Rama Kushna, melhor ainda.
Queria poder escrever que isso é coisa do passado, que cruzadas e inquisições pertencem aos livros de história. Mas as guerras do século XXI são reais, tão reais que pertencem à Internet. Para encontrar uma, basta digitar os nomes de quaisquer dois credos no google e seguir os gritos de dor e as poças de sangue. Muçulmanos x cristãos, judeus x muçulmanos, xiitas x sunitas, tem conflito envolvendo até os budistas.
Parece difícil relacionar qualquer um desses conflitos com a realidade brasileira. Estamos a milhares de quilômetros das bombas, e tenho (quase) certeza de que as pessoas religiosas que conheço nunca pensaram em metralhar alguém, ou em promover limpezas étnicas. Um dos muitos efeitos nocivos da banalização da violência, porém, é nublar nossa percepção. Há outros meios de prejudicar as pessoas além de atirar nelas ou explodir suas casas. E podemos sim encontrar algumas atitudes potencialmente nocivas por aqui, motivadas por uma lógica bem semelhante a que move qualquer guerra religiosa.
Para desenvolver o raciocínio, precisamos primeiro entender o conceito de externalidade. Academicamente falando, externalidades são os efeitos de uma decisão sobre terceiros que não participaram dela. No popular, as consequências dos nossos atos na vida dos outros. Ambientalistas gostam muito de usar esse conceito para falar sobre banhos demorados e SUVs queimando combustível demais.
O segundo ponto é bem mais difícil: devemos aceitar que existe uma chance de que as coisas em que acreditamos não sejam reais. Ou, pelo menos, que o modo como agimos, em função das nossas crenças, pode não estar correto, pode não ser exatamente aquilo que o deus que seguimos gostaria que fizéssemos. Talvez fique mais fácil admitir isso se nos lembrarmos, todos os dias, que aqueles que metralharam o Charlie Hebdo acreditavam estar fazendo o bem. Que o reverendo Jim Jones, pregando sabe-se lá o quê, convenceu mais de novecentas pessoas a se suicidarem. Que Hitler uniu a população alemã num projeto de genocídio e dominação mundial. Assim, basta um pouco de humildade para reconhecer que não somos mais sábios ou iluminados do que os outros seres humanos, e podemos ser iludidos do mesmo modo.
Ora, a partir do momento em que somos capazes de aceitar que não sabemos a “verdade”, podemos aplicar o conceito de externalidade para julgar nossos próprios atos. Só por via das dúvidas. Inclusive, e principalmente, aqueles que costumamos praticar no “automático”, pela sua aparente conformidade com as nossas crenças. Reparem que não estou dizendo para ninguém abandonar a própria fé. Nem tenho como falar de divindades alheias, quando meus deuses são os Vingadores e os cavaleiros Jedi. O ponto é que, apesar disso, não saio por aí desafiando as pessoas para duelos com sabres de luz.
Enfim, o que pretendo dizer é: a menos que uma entidade mitológica fale diretamente com você, único meio que poderia lhe dar absoluta certeza de que está fazendo a vontade Dele (a menos que você seja um esquizofrênico delirante, porque aí não poderia confiar nem nos seus olhos e ouvidos), duvide. Conteste. Pense. Analise as possíveis consequências das suas condutas.
Porque, por mais estranho que isso possa parecer, lembre-se: há quem acredite estar fazendo o bem ao matar pessoas. Parece óbvio que isso é o mal, e o que “nós” fazemos é o bem, não parece? Atirar no cartunista é ruim, doar para as crianças carentes é bom. Mas e quando o nexo causal não é tão evidente como tiro = morte?
E quando, por exemplo, precisamos decidir entre apoiar ou não uma campanha de distribuição de preservativos e educação sexual? O governo e os médicos dizem que a campanha salvará vidas. O padre, o pastor, dizem que incentivará a promiscuidade. Que o melhor antídoto é a castidade (sim, eles ainda dizem isso, doze de janeiro de 2015. Que a história registre). E quando pais tentam impedir que seus filhos recebam transfusões de sangue, porque a bíblia ordenaria “não comer o sangue”? E quando, novamente para evitar a “disseminação da promiscuidade”, católicos e evangélicos se unem para boicotar a vacinação contra o HPV, vírus que matou quase cinco mil mulheres no Brasil só em 2013?
Cabe o registro de que essas posições medievais já são fortemente combatidas por muitos fiéis e líderes religiosos, dentro das próprias igrejas. Aleluia, o século XV um dia vai acabar, tenho fé.
Poderíamos prosseguir com questões polêmicas, como aborto e pesquisa com células-tronco. Mas essa pequena lista já é suficiente para perceber que existem outras decisões de vida ou morte, além de apertar ou não gatilhos. Podemos assumir essas decisões, ou deixar que outros as tomem por nós.
Só que, eis a grande armadilha: nos abstermos das decisões já é uma decisão. E, do alto das minhas descrenças, creio que, se há ou um dia houve um Deus, Ele não ficaria nada feliz ao ver suas criações abrindo mão do dom mais precioso que concedeu aos seres humanos: o livre arbítrio. Somos livres, até para escolhermos abrir mão da nossa liberdade. Mas, se há ou um dia houve um Deus, será mesmo que Ele esperaria tão pouco de suas amadas criações?


quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

O elo mais fraco


No apagar das luzes de 2014, o governo federal anunciou mudanças nas regras de diversos benefícios previdenciários: pensão por morte, seguro-desemprego, abono salarial, auxílio-doença e seguro defeso (um tipo de seguro-desemprego para pescador). As manifestações contrárias foram consideravelmente abafadas pelo ruído dos fogos de réveillon, o que foi uma pena, pois constituem uma curiosidade por si só. Com exceção de uma meia dúzia de desvairados esquerdistas, que até hoje não entenderam que é preciso “acalmar o mercado”, as críticas que consegui filtrar remetem mais ao fato da Presidente ter prometido que não iria fazer isso, ou acusado o adversário de que ele é que faria aquilo, do que à (in)conveniência das medidas. Também, como criticar qualquer iniciativa que visa fomentar o tão desejado “superávit” e promover a “responsabilidade fiscal”? Afinal, já estamos cansados de saber que não tem outro jeito mesmo.
Fim dos intervalos comerciais. De todo modo, também não me interessa comentar muito sobre o mérito das novas regras. Há quem diga que são bem vindas, principalmente devido aos fortes indícios de fraudes nos benefícios. Sem dúvida, dificultar o acesso aos benefícios deverá reduzir as fraudes. Mas se a ideia é essa, então por que não eliminar de vez os benefícios? Máxima economia e fraude zero.
Enfim, caso alguém se interesse pelo que penso a respeito, esclareço logo que redução de direitos trabalhistas e cortes de benefícios previdenciários não seriam minhas medidas preferenciais para melhorar a gestão do dinheiro público. Mas o assunto sobre o qual desejo refletir é: admitindo que a decisão do governo partiu de uma determinada premissa (precisamos economizar xx bilhões) por que optou por esses cortes, e não por quaisquer outros?
Como sempre, a beleza está nos detalhes. Basta olhar para os prejudicados pelas medidas. Quem deixará de receber o seguro-desemprego, por ser demitido do primeiro emprego em menos de dezoito meses? Quem terá sua pensão tungada, pelo infortúnio do pretenso instituidor partir para o campo das felizes caçadas antes de completados dois anos do enlace matrimonial? Quem ficará sem abono salarial por ter trabalhado menos de seis meses?
Pois é. Eu não sei, você não sabe, os futuros prejudicados tampouco. Seria fantástico assistirmos a um grande protesto, repleto de jovens idealistas, indignados com a possibilidade de não receberem o seguro-desemprego caso sejam demitidos em menos de dezoito meses do emprego que ainda não conseguiram. Melhor ainda, uma passeata de belas moçoilas recém-casadas, angustiadas com o risco iminente de ficarem sem pensão caso seus maridos morram nos próximos dois anos. Pena que os jovens devem estar ocupados procurando o tal emprego do qual um dia serão demitidos. E quanto à passeata das recém-casadas, provavelmente não seria muito bem vista pelos seus maridos.
A lógica por trás da escolha, assim, é cristalina, e a mesma de sempre: perde mais quem pode menos. E quem “não existe” nada pode. Em compensação, foram firmemente rechaçadas as declarações de um ministro mais açodado sobre possível mudança nas “regras de reajuste do salário mínimo”. Acho que ele quis dizer que a política de ganhos reais do salário mínimo está ameaçada. Felizmente, a Presidenta já desdisse o que ele havia dito, porque tem um monte de gente que efetivamente ganha um salário mínimo, e que não iria gostar nada dessa novidade. Espero que ela esteja falando sério desta vez, porque, com o devido respeito às opiniões contrárias, o salário mínimo nacional ainda merece muito o nome de mínimo.

Enquanto isso, o Ministro da Fazenda avisa que vai acertar as contas públicas sem tirar um centavo dos programas sociais. A Ministra da Agricultura proclama que no Brasil não existe latifúndio. O Ministro dos Esportes assume que não entende nada de esporte. Os sociais-democratas que na verdade eram neoliberais viraram trabalhistas e se erguem em defesa do proletariado, os trabalhistas viraram neoliberais. E eu, que andava pensando em escrever um pouco de ficção neste ano de 2015, precisarei de muita transpiração para produzir qualquer fantasia que não leve de goleada da nossa psicodélica realidade.