domingo, 8 de março de 2015

De olhos bem fechados


Há tantos tipos de pessoas no mundo quanto há pessoas no mundo. Ou, parafraseando Jaime Lannister, não existem pessoas como eu. Há apenas eu. Mas, unicamente para este artigo, vamos simplificar e assumir que há quatro tipos de pessoas: as que perguntam o que o mundo pode fazer por elas; as que perguntam o que elas podem fazer pelo mundo; as que não estão nem aí pra ¶0®®@ nenhuma; e as que tem um pouco de cada uma das três anteriores, e que na verdade são o único tipo que existe mesmo.
Afirmo sem receio que a categoria predominante e socialmente aceita pela civilização judaico-cristã-ocidental moderna e contemporânea é a primeira. Mas, para dirimir quaisquer dúvidas, vamos refletir sobre o significado atual do termo “bem sucedido”. Aplicando-o, por exemplo, a um médico. Qual o objetivo da Medicina? Salvar vidas; ou, se quisermos ser mais rigorosos, cumprir o juramento de Hipócrates, cuja versão atualizada inicia com a seguinte frase: “Prometo solenemente consagrar a minha vida ao serviço da Humanidade.”.
O médico bem sucedido, portanto, deveria ser aquele que, ao consagrar mais intensamente sua vida a serviço da humanidade, salvasse o maior número de vidas. Desafio qualquer um, porém, a encontrar uma só menção a médicos que dedicam sua vida profissional a causas humanitárias, trabalhando em regiões inóspitas, com baixíssima (ou inexistente) remuneração, em que estes sejam qualificados como “bem sucedidos”. Não, poderemos encontrar uma série de adjetivos elogiosos a esses profissionais, mas jamais “bem sucedidos”. Um médico que dedica sua vida a serviço da humanidade implantando silicone em seios e nádegas de subcelebridades terá muito mais chances de ser “bem sucedido” do que um que prefira combater a epidemia de Ebola na África.
Claro que isso vale para todas as categorias profissionais. O advogado de sucesso não é aquele que mais contribui para a administração da justiça, o comunicador de sucesso não é aquele que mais fielmente se compromete com a divulgação da verdade. Para toda e qualquer carreira, a medida do sucesso é a conta bancária. 
Por mais que possamos não simpatizar com esse critério, ele é uma realidade, se não no mundo todo (que passo longe de conhecer), pelo menos na maioria dele, e com certeza na América. O que devemos pensar é: por que as coisas são assim? Ou, por que não deveriam ser? Afinal, não há nada de errado em desejar uma vida confortável, usufruir de alguns prazeres ao longo da vida. Por que alguém dedicaria sequer uma parcela do seu esforço para ajudar estranhos, almejando uma abstrata “contribuição para a sociedade”? E o que poderia, efetivamente, realizar?
Para reforçar a irracionalidade de viver “para o mundo”, vamos pensar em Oskar Schindler. Para quem não viu o filme, nem leu o livro, nem clicou no link, Schindler foi um industrial alemão que salvou a vida de mais de mil judeus durante a segunda guerra, empregando-os em suas fábricas. Os esforços de Schindler custaram a ele toda sua fortuna. Em troca, ele recebeu alguma ajuda financeira das organizações judaicas no pós-guerra, até 1974, quando faleceu, depois de quase três décadas de insucesso em diversas tentativas de novos negócios. Ganhou alguns títulos honoríficos, e teve a vida filmada numa obra extraordinária que levou sete Oscars em 1994.
Estima-se que de nove a onze milhões de judeus foram mortos no Holocausto. Schindler, portanto, reduziu o genocídio em 0,01%.
A história de Schindler tem muito a nos ensinar, mas, como o dia é de simplificações, atenhamo-nos a apenas uma lição: sacrifícios pessoais devastadores geram ganhos estatisticamente irrelevantes para a humanidade. Novamente, por que alguém faria isso?
“Para se sentir bem consigo mesmo” é uma resposta clássica. Mas será verdade? Preocupar-se com as pessoas geralmente produz apenas mais preocupação com as pessoas. Sempre haverá mais, muito mais a se fazer. Aliás, nunca vi isso tão bem representado como numa das últimas cenas da Lista de Schindler, quando o alemão chora por ainda ter um carro e um anel, se condenando por não tê-los vendido, o que poderia ter salvado mais duas ou três vidas.
Não vamos, porém, desconsiderar totalmente a força do altruísmo, ou do “egoísmo altruísta”, que seria a prática do bem como busca de satisfação pessoal. Como os judeus ensinaram a Schindler, “quem salva uma vida, salva um mundo inteiro”. E, do mesmo modo que grandes atos individuais tem pouca relevância global, pequenos gestos podem mudar radicalmente a vida daqueles que nos cercam.
Sob esse ponto de vista, Schindler não salvou 0,01% das potenciais vítimas do holocausto; salvou mais de mil mundos. E nós, simples espectadores do nosso tempo, ao darmos um presente de natal a uma criança pobre, não estamos concedendo um mísero minuto de alegria em meio a uma vida de tristezas. Estamos, talvez, acendendo uma luz que vai mostrar àquela única criança que existe solidariedade, que um futuro diferente é possível.
“Ah, mas não viemos até aqui para cair no clichê do copo meio cheio ou meio vazio, viemos?”
Melhor não, isso seria frustrante. Retornemos então a uma visão objetiva, e reconheçamos uma pequena verdade: como indivíduos, podemos fazer muito pouco. Como coletividade, pouco fazemos, até porque sequer nos enxergamos como parte de um coletivo. A injustiça é mais forte do que nós e tentar combatê-la só causa angústia. Por isso, fugimos. Mas, e se não fosse possível fugir? Se não houvesse meios de fechar nossos olhos? Se houvesse crianças morrendo de fome ao alcance de nossos braços, e não em documentários ou estatísticas? Nesse caso, a pergunta seria outra: como poderíamos viver pensando em acumular bens, enquanto cadáveres se amontoam aos nossos pés?
Não poderíamos. Não suportaríamos olhar, todos os dias, para crianças sentadas num chão sujo, famintas, com os dedos sangrando, costurando nossas roupas e sapatos. Mas daqui de onde escrevo, ou de onde você lê, não podemos ver essas crianças. E, de fato, não queremos vê-las. Não queremos sentir seu sofrimento, nem partilhar o seu desespero. Se há uma escolha, escolhemos não ver. E, não vendo, podemos até esquecer que elas existem.
O problema é que, em algum outro lugar do mundo, fechar os olhos não é uma opção. Não enquanto bombas caem dos céus e corpos são plantados na terra. Mas esse não é o mundo que queremos, não é o mundo que pode nos fazer felizes. Por isso, seguimos de olhos bem fechados. Seguimos olhando para nós mesmos. E de que outra maneira seria possível viver?

"Senti que os judeus estavam a ser destruídos. 
Tinha que os ajudar; não havia escolha".
(Oskar Schindler)