Nem quando atualizava o blog semanalmente conseguia dar
conta sequer de uma mínima fração dos acontecimentos que, por sua efetiva
relevância ou bizarra peculiaridade, mereciam mais uns quinze
segundos de fama. Agora, com publicações menos que esporádicas, é como se o
mundo girasse tão rápido que, quando penso nas notícias de hoje, já é depois de
amanhã. Mas ontem aconteceu tanta coisa, que
desta vez não resisti a escrever pelo menos umas poucas linhas sobre cada uma
delas.
A estrelinha de natal ainda brilhava quando estourou o
grande escândalo da milionária lista de mantimentos do avião presidencial. A
licitação foi cancelada tão rápido, e tão rápido passamos para outro assunto,
que nem rolou tanto sangue entre o pessoal do “o Lula também comprava Nutella”,
os revoltados do fundão que bradavam “prendam todos”, e a galerinha que tirava
sarro denunciando que a Häagen-Dazs também é do
filho do Lula. Estou tão atrasado que só direi isto: coitado do
decorativo, mais de quinhentos anos de esbórnia e quando chega a vez dele não
pode comprar nem um sorvetinho.
Os outros fatos são muito mais sérios, e não se prestam a
piadas. Na verdade, deviam estar em outro texto. Mas vão ficar aqui mesmo.
Dois indivíduos agridem com os próprios pés e punhos, até
a morte, um camelô. O motivo? O ambulante interferiu quando eles iriam agredir com
os próprios pés e punhos, provavelmente até a morte, um travesti. E porque eles
queriam espancar o travesti? Porque o travesti tentou roubar o celular deles,
disse um. Porque o travesti reclamou que eles estavam fazendo necessidades no
meio da rua, corrige outro. Por nada, eles só odeiam travestis, dizem as
faixas. Mas no fim quem morreu foi o ambulante, que não tinha feito nenhuma
dessas coisas, nem era travesti. E um dos matadores diz que “não era uma má
pessoa” e estava arrependido por ter matado um “cidadão de bem”. Nem ensaiando o
discurso de remorso conseguiu esconder que, se existe de fato algum
arrependimento, foi só por ter errado o alvo.
Na noite de 31 de dezembro, um alucinado mata doze
pessoas, incluindo o próprio filho de oito anos. Antes mesmo dos corpos esfriarem a imprensa divulga uma carta póstuma do louco que é um pot-pourri dos pensamentos profundos
dessa gente bronzeada que vocifera contra “tudo isso que está aí”: ódio das
mulheres, dos políticos, dos impostos, da corrupção, dos bandidos. Muita raiva
dos bandidos, porque ele também era uma boa pessoa, igual o espancador do
travesti e do camelô, um “cidadão de bem”. E toca gente a dizer que a culpa é da
onda neofascista, e outros a negar; “com certeza” ele já era insano antes.
E para uma meia dúzia ele não podia ter uma arma, para duas
dúzias todo mundo na festa deveria ter uma arma (aliás, Westworld é bem legal),
e acho que ouvi até um pastor aí dizendo que foi o demônio. E no fim tudo que
restou foram corpos empilhados por uma criatura atormentada que odiava a si
mesmo mais do que a tudo.
E acredito, de verdade, que por alguns instantes o mundo
todo ficou triste, somente triste, e pensando que não vale a pena sentir tanto
ódio, e todos nos lembramos juntos de algum belo pensamento budista ou de uma música do John
Lennon. Mas foi por tão poucos instantes, que quando me dei conta as pessoas já estavam com raiva de novo. Com tanta raiva que abrem um sorriso quando chegam
notícias de mais e mais mortes, claro, desde que os mortos não sejam “cidadãos
de bem”.
Acham que estou falando do “acidente” no presídio do
Amazonas? Sinto, ainda não cheguei em 2017. Mas se a humanidade continua tão
desumana, não me surpreende que o futuro continue a repetir o passado.