terça-feira, 26 de abril de 2016

Alien versus Predador



“Em tempo de guerra, a primeira vítima é a verdade.”
Boake Carter

Há quem tema que o crescente acirramento de ânimos no país nos levará a um panorama de guerra civil. Não há mais o que temer (sem trocadilho), a guerra já começou.
Para quem duvida, vamos às evidências. Primeiro, o sepultamento da verdade. Um estudo da USP apontou que três das cinco reportagens mais compartilhadas na rede social facebook na semana do impeachment eram falsas. Não é que as pessoas não possam conferir se uma denúncia é ou não verdadeira, ou sejam preguiçosas demais para fazê-lo; simplesmente pararam de se importar.
Aceitar e reproduzir quaisquer mentiras, desde que estas ajudem o “seu” exército a avançar, reflete um padrão de conduta típico da guerra: a relativização de condutas que, em tempos de paz, seriam claramente reprováveis. Afinal, quem está lutando numa guerra não pode se dar ao luxo de respeitar princípios éticos, os dez mandamentos, ou a Declaração dos Direitos Humanos. Vale tudo, como dizia Tim Maia; só não vale dançar homem com homem nem mulher com mulher, bradam enfurecidos os combatentes perfilados à extrema direita do salão.
Mentir vale, ofender também vale. Dizer que roubou porque todo mundo rouba, está valendo. Exaltar torturador rende até aplausos; aqueles que tem vontade de aplaudir, mas sentem um pouco de vergonha, saem pela tangente com imitável estilo: o “meu lado” pode até ter homicidas, psicopatas e torturadores, mas o “lado de lá” tem muito mais, vamos fazer as contas? Eu cuspi no coleguinha (sério que isso vai virar moda?), mas só porque ele me xingou primeiro, foi ele quem começou! Ah, que falta faz um bedel pra botar todos esses malcriados pra fora!
Começamos a não perceber os limites, sinal de que estamos perigosamente próximos da destruição mútua assegurada. 
Completando a lista de evidências, toda guerra precisa de um objetivo, ou ao menos de um pretexto. A que agora assistimos (ou todos participamos?), sem dúvida, é um duelo pela tomada do poder.
Mais difícil, porém, do que perceber que há uma guerra em curso e escolher um lado para se “alistar”, é enxergar que não podem existir só dois lados. Ah, não!, a pretensa volta da Monarquia não conta como terceiro lado. Deve ser só alívio cômico pra suavizar o enredo, não pode ser sério isso.
Encurralados entre duas forças que pouco se importam com a contagem de corpos, nosso grande desafio não é vencer a guerra, mas apenas sobreviver a ela. Não é alimentar o ódio até a aniquilação total do inimigo, mas enxergar que podemos estar lutando contra os inimigos errados, pois os verdadeiros algozes não marcham do lado oposto da rua, mas assistem a tudo dos gabinetes refrigerados dos palácios.
A “ponte do futuro” não será erguida a partir de escombros e lembranças de páginas tristes da nossa história. Mas ainda podemos ter esperança de construí-la, se pararmos de jogar os tijolos uns nos outros em nome de falsos ídolos.
“Quando os ricos fazem a guerra, são sempre os pobres que morrem.”
Jean-Paul Sartre


terça-feira, 19 de abril de 2016

Por um sentido na vida


E de repente era domingo, mas não um domingo qualquer. Era um dia em que ia acontecer alguma coisa muito importante, que ia ficar pra história, e todo mundo estava falando sobre isso.
E eu, pensando que todos os dias acontecem coisas muito importantes, que qualquer dia pode ser o dia mais importante na vida de alguém, me esforcei pra ver o que tinha de tão diferente nesse domingo.
E foi um domingo de sol, mas mesmo assim muita gente passou o dia na frente da televisão, o que até aí não é tão diferente do que costumam fazer em todos os domingos.
Mas também tinha um monte de gente na rua, como não em todos os domingos. E não era carnaval, nem micareta (acho). Na verdade dava pra separar em dois montes de gente, cada lado torcendo pra uma coisa. E lá em Brasília construíram até um muro pra separar um bando do outro.
E de repente dava pra perceber que o dia era, sim, um tanto diferente.
E o domingo chegava ao fim, e as pessoas se agitavam cada vez mais. Algumas comemoravam, com algazarra e palavrões. Outras se lamentavam, com choro e mais palavrões. Nada diferente do que já vira acontecer em outros domingos, mas desta vez não parecia ser por causa do futebol.
Ah, mas com certeza, se esse domingo foi mesmo um dia assim tão importante, no dia seguinte eu sentirei a diferença.
Mas, quando saí às ruas, não percebi nada. O vendedor de flores ainda estava no sinal da esquina, como na segunda anterior, e na outra antes desta. O morador de rua ainda estava no viaduto, arrastando o mesmo cobertor surrado de sempre, buscando restos nas mesmas latas de lixo.
Mas pare, espere, pense, todas as coisas do mundo não vão mudar assim, de uma hora pra outra. Algumas coisas já devem ter mudado, outras não. É só questão de procurar.
Então procurei, porque o mundo se estende muito além do nosso quintal. No sinal da minha esquina, o vendedor de flores continuava lá. Mas, na cidade de Montes Claros/MG, o prefeito não estava mais na Prefeitura. Havia sido preso por corrupção.
E esse prefeito, no domingo, havia sido citado como exemplo de gestão, naquela coisa que todo mundo estava assistindo na tevê, e em nome dele sua esposa bradou contra a corrupção. E na segunda, ele foi preso como corrupto. É, muita coisa mudou pro prefeito, e pra mulher do prefeito, de domingo pra segunda.
E fiquei sabendo, também, que além da deputada que louvou a virtude do marido preso por corrupção, teve também um deputado que exaltou a ditadura, e homenageou um assassino e torturador. E aí outro deputado, por causa disso, ou por causa de outra coisa, ou por causa disso e também por causa de outras coisas, foi lá e cuspiu no deputado que gosta de torturador e gosta da ditadura.
Ah, e o deputado que cuspiu no deputado que gosta de torturador e gosta da ditadura, apesar de ser homem, gosta de outros homens. Não aquele gostar no sentido fraternal, cristão, mas aquele gostar proibido para menores, que só pode passar na televisão depois da meia noite (na internet pode passar o dia todo!). E parece que para algumas pessoas o fato desse deputado gostar de outros homens é mais importante do que o fato do outro gostar da ditadura e de torturadores, e cuspir nos outros (a tempo, que nojo! Sua mãe não te deu modos, menino?) é mais grave do que exaltar a tortura, o que eu achei estranho pra caramba, mas, poxa, bem que me avisaram que não seria um domingo como outro qualquer.
E de repente comecei a achar que o fato tão importante esperado para o domingo devia ser o arranca rabo desses dois, porque só se falava nisso.
E, no meio do assunto, percebi que mais uma coisa havia mudado: o monte de gente que até domingo falava coisas do tipo “se o Darth Vader é malvado isso não é desculpa pra ninguém ser malvado também”, começou a “aliviar” a apologia à tortura, porque um tal de Stalin também torturou, um tal de Che também matou.
Fiquei sem saber como eles pensam, fiquei em dúvida até se pensam mesmo, se estão tentando me enganar, ou a si próprios. Bem que me avisaram que não seria um domingo como outro qualquer!
E descobri, pra completar, que o povo que passou o dia na frente da tevê ficou horrorizado com “nossos” deputados, que não sabem nem falar, que pensam que o plenário é igreja, que exaltam a ditadura, que trocam xingamentos, empurrões e cusparadas, quando deviam estar ali resolvendo os problemas do país.
E de repente podem ter começado a pensar que “só” trocar de presidente (ah, por isso que o dia era especial, como não lembrei antes?) pode não ser assim tão importante como eles tinham pensado, porque também precisamos trocar de deputados, e tem mais de 500 deputados, e será que precisamos de tantos, e como esse pessoal que nem sabe falar direito virou deputado, e está decidindo a nossa vida em nome do evangelho quadrangular, da BR-429, do aniversário da Ana, minha neta Ana, pela memória de um torturador, ou porque a soberba procede (isso me deu câimbra nos ouvidos) a queda?
E de repente, fiquei aqui pensando que esse domingo pode mesmo ter sido muito importante.




quinta-feira, 14 de abril de 2016

Jovens demais para morrer


Em nossas breves e espaçadas experiências quase democráticas, já tivemos impeachments, renúncias, suicídios, mortes mal explicadas, poucos avanços e múltiplos recuos. Tivemos governantes depostos sob a mira de fuzis, e outros que nem precisaram ser derrubados, pois cederam ao próprio desequilíbrio. Tivemos um presidente que nunca foi, substituído por outro que, sem ter sido eleito sequer para um mandato, ficou no centro do poder por três décadas. Já tivemos quase de tudo, e ainda estamos por aqui.
Para quem já passou por tanto, não é uma mera votação com tons circenses e espetaculosos num domingo que ameaça a democracia. Antes, o fato de que o futuro de um governante será decidido num balcão de negócios, onde a virtude escasseia nos dois pólos, isto sim já é a pior das derrotas.
Um provável impeachment não será a morte da democracia, como alardeiam os defensores do atual governo, porque o que ainda não nasceu não pode morrer. Tampouco será o dia em que “tomaremos nosso país de volta dos vermelhos”, devaneio dos que marcham ao largo do pato holandês pirateado pela FIESP, pois não se pode recuperar o que nunca foi seu, nem tomar de volta de quem também jamais possuiu coisa alguma, além de uma efêmera ilusão de poder.
O que não significa, em absoluto, que não tenhamos nada a perder. Houve pequenas conquistas na nossa quase democracia, conquistas que agora se esvaem a cada dia, a cada ato de intolerância, a cada golpe baixo, a cada ferimento que sofrem as instituições.
E, para marcar tanta derrocada, eis que ergueram um muro na frente do Congresso, para que cada torcida fique de um lado, cada um tão cheio de certezas, cada um tão ávido por sentir raiva de quem está do outro lado.
E eis que ergueram esse muro, para tornar ainda mais patética e esquizofrênica a disputa pelo que resta da pilhagem, travestida de processo constitucional, luta pela democracia, embate contra a corrupção, luta de classes, ou o título pomposo mais ao gosto do freguês.
E ali estará, até domingo pelo menos, esse muro, para materializar a divisão entre os “vermelhos” e os “verde-amarelos”, e para mascarar as diferenças que realmente importam: entre os que estarão no gramado e os que estarão nos plenários, entre os que conduzem e os que são conduzidos. Entre os que tem poder de verdade e os que não tem nem nunca tiveram nada, além do direito de se indignar (nem sempre) e de sonhar.
E cada pessoa de cada lado do muro acredita de todo coração que está do lado certo, e de que vai vencer.
Não teriam pensado o mesmo os jovens que, há mais de vinte anos, saíram às ruas para derrubar outro presidente? Estariam hoje esses jovens, não mais tão jovens, pensando em quantos presidentes precisarão ser derrubados? 
Quem vencerá no domingo não será a multidão de bandeira vermelha, após 13 anos menos famintos, mas ainda sem teto, sem terra, sem país. Nem a multidão de verde-amarelo, que levanta faixas contra a corrupção ao lado de Eduardo Cunha, e quer acreditar num novo país com os mesmos atores do capítulo anterior.
O passado se repete como farsa, a caminho da tragédia. Mas talvez ainda haja tempo para escapar, se percebermos, apenas por um instante, o quanto estamos ferrados. Pena que ninguém se arrisca a levantar a cabeça, ocupados demais em discutir qual lado tem mais acusados de corrupção, quem terá sido mais incompetente, em que cenário nosso futuro será menos calamitoso.
Gostaria de acreditar, como os vermelhos, que vale a pena lutar pela ressurreição de um governo que não acreditou no próprio discurso, que trocou a esperança pelo cinismo, que se aliou ao que havia de mais retrógrado na política brasileira, e agora está sendo chamado a pagar o preço das suas escolhas. Gostaria ainda mais de crer, como os verde-amarelos, que o iminente fim desse governo iniciará uma nova era, com elevados padrões éticos, mas ainda que quisesse ser tão ingênuo, eis que vem Paulo Maluf como bastião da integridade, mudando de lado na última hora, para que nem os mais fronteiriços possam crer que um amanhã melhor está para chegar.
Sempre haverá, porém, o dia depois de amanhã. Quando a poeira baixar, quando o muro for desmontado, quando a raiva se tornar uma lembrança distante, quando os diferentes voltarem a ser percebidos como iguais, poderemos reconstruir.
Quanto tempo isso vai demorar, o quanto vamos sangrar até lá, quem poderá saber? Mas se há algo pelo qual vale a pena lutar a partir da segunda-feira, é para nos livrarmos o quanto antes dos escombros dos muros que hoje nos dividem.

P.S.: Para que os viciados em pensamento binário possam me colocar de um dos lados do estúpido muro, e xingar a vontade, complemento que, se deputado fosse, votaria contra esse atual pedido de impeachment, que para ter o mínimo de seriedade precisaria no mínimo incluir o vice-presidente, já que PT e PMDB foram cúmplices tanto nas “pedaladas” quanto no suposto uso de dinheiro de propina na campanha.