No último dia das
crianças, meu filho pediu de presente um Banco Imobiliário. Não aquele que vem
com uma calculadora, mas o que tem notinhas. Exatamente o mesmo que eu jogava
quando tinha a idade dele, nos primórdios da saudosa década de 80. Bem, não
exatamente o mesmo. As notas agora são impressas num papel de
pior qualidade. Os imóveis e companhias do tabuleiro são outros. Temos, por
exemplo, uma empresa de telefonia celular. E, por último e mais importante, na
década de 80 os hotéis eram grandes casas vermelhas, que diferiam das casinhas verdes mais pela cor e tamanho do que pelo formato. Agora, os hotéis são torres acinzentadas.
Como tive muitas
coisas a fazer entre a década de 80 e hoje, talvez não tenha prestado a devida
atenção às mudanças que ocorreram enquanto minha própria vida passava. Mas abrindo o Banco Imobiliário moderno, olhando aquelas
torres, me pus a pensar em como era diferente o mundo do “meu” Banco
Imobiliário.
O filósofo alemão
Hegel, morto em 1831, mais de cem anos antes da invenção do Banco Imobiliário,
acreditava que o “espírito do mundo” evoluía progressivamente (embora não sem
percalços) ao longo da história. Estaríamos, assim, sempre a caminho de
patamares mais altos de autoconhecimento e de liberdade. Para Hegel, "A história universal
nada mais é do que a manifestação da razão".
Difícil acreditar nisso, quando tudo a nossa volta parece tão
sem sentido. Mas Hegel dizia também que “cada indivíduo é filho de sua época”. Não
podemos antever o futuro e, a maior parte do tempo, nos esquecemos de olhar
para o passado. Até que somos transportados repentinamente de volta no tempo por uma
foto, pelo resgate de uma lembrança fugidia, ou por uma peça de Banco Imobiliário.
Produto da minha época que sou, sinto-me realmente incapaz de
afirmar se Hegel tinha razão e o “espírito do mundo” caminha para a
plenitude, e não para a entropia. Mas, quando penso que no mundo do “meu” Banco
Imobiliário viver sob uma ditadura sanguinária do nosso lado do Equador era
regra, não exceção; que, em 1935 o “Monopoly” foi lançado nos Estados Unidos
entre duas grandes guerras, apenas quatro anos antes do início do holocausto;
que o século XIX de Hegel trouxe, além das tradicionais guerras e da Revolução
Industrial, a abolição da escravatura em quase todo o globo; nestes momentos,
me permito pensar que talvez, apenas talvez, quando meu filho comprar o Banco
Imobiliário do filho dele, não viveremos mais num país em que toda a linha
sucessória da República esteja comprometida por escândalos de corrupção.
Tampouco num mundo que deixa crianças morrerem afogadas para proteger linhas
imaginárias, que discrimina, humilha e mata pessoas por causa da cor da pele,
das tendências sexuais ou dos deuses em que calharam crer.
E, falando em crenças, percebo que, por mais agradável que seja
imaginar um novo amanhã, somente acreditar não é o bastante. Como vaticinou o
próprio Hegel, “nada de grande se realizou no mundo sem paixão”.
Não sei como será o mundo do Banco Imobiliário do meu neto.
Não sei, sequer, se terei netos, se eles também ganharão Bancos Imobiliários,
ou se ainda estarei por aqui para jogar com eles. Mas já não me preocupo tanto com o futuro. Escolho acreditar que, no fim, o que importa é a jornada,
não o destino. E, enquanto arder a paixão, cada passo valerá a pena.