quarta-feira, 14 de outubro de 2015

A grande roda da história


No último dia das crianças, meu filho pediu de presente um Banco Imobiliário. Não aquele que vem com uma calculadora, mas o que tem notinhas. Exatamente o mesmo que eu jogava quando tinha a idade dele, nos primórdios da saudosa década de 80. Bem, não exatamente o mesmo. As notas agora são impressas num papel de pior qualidade. Os imóveis e companhias do tabuleiro são outros. Temos, por exemplo, uma empresa de telefonia celular. E, por último e mais importante, na década de 80 os hotéis eram grandes casas vermelhas, que diferiam das casinhas verdes mais pela cor e tamanho do que pelo formato. Agora, os hotéis são torres acinzentadas.
Como tive muitas coisas a fazer entre a década de 80 e hoje, talvez não tenha prestado a devida atenção às mudanças que ocorreram enquanto minha própria vida passava. Mas abrindo o Banco Imobiliário moderno, olhando aquelas torres, me pus a pensar em como era diferente o mundo do “meu” Banco Imobiliário.
O filósofo alemão Hegel, morto em 1831, mais de cem anos antes da invenção do Banco Imobiliário, acreditava que o “espírito do mundo” evoluía progressivamente (embora não sem percalços) ao longo da história. Estaríamos, assim, sempre a caminho de patamares mais altos de autoconhecimento e de liberdade. Para Hegel, "A história universal nada mais é do que a manifestação da razão".
Difícil acreditar nisso, quando tudo a nossa volta parece tão sem sentido. Mas Hegel dizia também que “cada indivíduo é filho de sua época”. Não podemos antever o futuro e, a maior parte do tempo, nos esquecemos de olhar para o passado. Até que somos transportados repentinamente de volta no tempo por uma foto, pelo resgate de uma lembrança fugidia, ou por uma peça de Banco Imobiliário.
Produto da minha época que sou, sinto-me realmente incapaz de afirmar se Hegel tinha razão e o “espírito do mundo” caminha para a plenitude, e não para a entropia. Mas, quando penso que no mundo do “meu” Banco Imobiliário viver sob uma ditadura sanguinária do nosso lado do Equador era regra, não exceção; que, em 1935 o “Monopoly” foi lançado nos Estados Unidos entre duas grandes guerras, apenas quatro anos antes do início do holocausto; que o século XIX de Hegel trouxe, além das tradicionais guerras e da Revolução Industrial, a abolição da escravatura em quase todo o globo; nestes momentos, me permito pensar que talvez, apenas talvez, quando meu filho comprar o Banco Imobiliário do filho dele, não viveremos mais num país em que toda a linha sucessória da República esteja comprometida por escândalos de corrupção. Tampouco num mundo que deixa crianças morrerem afogadas para proteger linhas imaginárias, que discrimina, humilha e mata pessoas por causa da cor da pele, das tendências sexuais ou dos deuses em que calharam crer.
E, falando em crenças, percebo que, por mais agradável que seja imaginar um novo amanhã, somente acreditar não é o bastante. Como vaticinou o próprio Hegel, “nada de grande se realizou no mundo sem paixão”.
Não sei como será o mundo do Banco Imobiliário do meu neto. Não sei, sequer, se terei netos, se eles também ganharão Bancos Imobiliários, ou se ainda estarei por aqui para jogar com eles. Mas já não me preocupo tanto com o futuro. Escolho acreditar que, no fim, o que importa é a jornada, não o destino. E, enquanto arder a paixão, cada passo valerá a pena.