quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

O Grande Truque


“Os homens inventaram o ideal para negar o real.”
(Friedrich Nietzsche)

Quando a alternativa é a danação eterna, não é preciso oferecer muito para se vender como paraíso. Porém, por mais que eu possa condenar (e condeno) a teologia do castigo, é inegável que a oposição entre céu e inferno faz algum sentido. Pelo menos ambos competem na mesma arena: são elementos que se inserem, juntos, numa narrativa mitológica.
Não tenho medo do inferno, nem espero pelas recompensas do paraíso (e quem se importa com o que eu penso?). Minha descrença de fato é irrelevante, exceto para reforçar a estranheza da conclusão a que cheguei: ofende menos a lógica acreditar em qualquer mitologia religiosa do que em certos argumentos utilizados para justificar as mais nefandas práticas terrenas. Porque as mitologias exigem apenas que pratiquemos a fé, aquela velha mania de crer no que não se pode provar. Mais poeticamente, que acreditemos no impossível. Para quem crê, haverá um pote de ouro no fim do arco-íris. Os defensores do indefensável pedem mais, que neguemos o real, ou o percebamos não em si, como aquilo que aconteceu, mas apenas em oposição com o imaginário, com o que não aconteceu.
Assim se justificam, por exemplo, os crimes cometidos pela ditadura militar que já foi chamada até de “ditabranda”: eles foram necessários para evitar crimes ainda piores, que com certeza seriam cometidos pelo regime sanguinário que existiria, se não tivesse existido o regime sanguinário que existiu.
Assim tentam nublar escândalos de corrupção, afirmando que as denúncias servem a interesses de “forças ocultas”, que pretendem implodir a abençoada estabilidade de que desfrutamos e destruir a imagem do nosso país, para depois servi-lo à rapina dos imperialistas.
Assim persistem os discursos de intolerância e preconceito, injustificáveis por si, mas que se fortalecem cinicamente marcando oposição a uma imaginária “ditadura das minorias”.
Assim seguem ganhando eco vozes que já foram sufocadas no passado, que pregam desde o retorno à Lei de Talião até um “novo conceito” para o termo escravidão. De nada importa que a realidade já os tenha derrotado antes. Sempre haverá moinhos de vento para os que se dispõem a serem quixotes.
É fácil entender por que essa técnica de persuasão é tão eficaz. Para todo mal que se faça, sempre haverá a possibilidade de um mal maior. Não há argumento de lógica que resista a um ato de fé. Temos, assim, duas opções: insistir em contrapor o racional ao emocional, a ciência à crença, o real ao imaginário; ou simplesmente aceitar que as pessoas acreditam no que querem acreditar. Conformar-nos com o fato de que, talvez, não seja possível demovê-las da paixão pelo ilusório, mas apenas confrontá-las com o real.
Portanto, deixemos os devaneios, paranoias e ilações sobreviverem nas mentes daqueles que os abraçam. Não importa. Não precisamos negar que havia o “risco” de que se instalasse aqui uma ditadura ainda pior do que a que houve. Ufa, ainda bem que não aconteceu. Só que o alívio de termos escapado desse terrível destino não faz com que um estado (nesse caso é com letra minúscula mesmo) que patrocinou sequestros, torturas, assassinatos e exílios, dentre outros delitos “menores”, deixe de ter sido vil, abjeto e criminoso.
Do mesmo modo, a possível existência de interesses políticos e financeiros puxando as cordinhas dos atores e delatores dos escândalos de corrupção não absolve os corruptos. O medo de ser oprimido no futuro não dá a ninguém o direito de ser opressor no presente.
Basta reconhecer que, no fim das contas, aquilo que fazemos é muito mais importante do que aquilo em que acreditamos. Bênçãos aos que creem no Paraíso e, por suas ações, nos aproximam desse ideal aqui na Terra. Maldições para ninguém, porque não acredito nessas coisas. “Eu acredito na pureza da resposta das crianças.” Acredito na utopia que não irei alcançar, na verdade que não conhecemos. Ah, e quem se importa com as coisas em que eu acredito?


quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Além da Linha Vermelha


Os leitores do blog costumam dizer que sou de “esquerda”. Dependendo de quem coloca o rótulo, o uso da palavra pode significar tanto simpatia pelas minhas ideias como a mais profunda e abissal aversão.
Já escrevi uma pequena série sobre a ânsia da humanidade por orientações direcionais (textos 1, 2 e 3), na qual pretendi pontuar que os conceitos que relacionamos com “direita” e “esquerda” estão um tanto anacrônicos, e que esse tipo de polarização passa longe do que deveríamos almejar. Posicionar à "esquerda" valores que devem ser universais, como o combate à desigualdade social e a defesa dos direitos civis, é cometer com os "bons" liberais as mesmas injustiças de que são vítimas os "esquerdistas" contemporâneos quando tentam colar entre suas (nossas?) bandeiras uma mixórdia que vai do socialismo autoritário pré-muro de Berlim ao capitalismo predatório chinês.
Confesso, porém, que essa contestação aos modelos tradicionais, que conduzo usualmente, sempre deixa perguntas no ar: se não vamos seguir pela “direita” nem pela “esquerda”, por onde então? Se pagar dívidas “pode não ser uma prioridade”, é para deixar de pagar ou não? Se a participação política não pode acabar no ato de votar, o que mais devemos fazer?
Não deixo perguntas sem resposta por acaso - como não será por acaso, nem por ser burrroo dá um zero pra ele que ofenderei a norma culta iniciando a próxima frase com um pronome oblíquo átono. O faço, algumas vezes, por não ter mesmo uma boa resposta. Em todas as vezes, por não querer que ninguém se guie pelas minhas respostas. “Ah, chegou atrasado, isso é filosofia clássica, se preocupar mais com perguntas do que com respostas.” Pode até ser. Mas não entendo nada de filosofia, não li nem o "Mundo de Sofia", e no geral me considero bem pragmático. Acho que as perguntas precisam de respostas. Mas elas devem ser conquistadas.
Por rejeitar verdades prontas, não abraço ideologias ou religiões. Malgrado as pretensas diferenças entre os muitos “ismos” que lutam ao longo dos séculos pela preferência do público, todos se assemelham dos modos mais absolutamente nocivos: provocam divisões, quando precisamos de união; e pretendem impor modelos de pensamento, ignorando que dependemos da liberdade tanto quanto de oxigênio.
“Nenhum homem é uma ilha”, poetizou John Donne. Mas todas as ilhas são diferentes, por mais que de longe possam parecer iguais. E para que os ávidos por respostas não me acusem de estar tergiversando novamente, afirmarei a única ideologia que tento praticar, e que desejo para todos: o livre arbítrio. Que cada um pense por si mesmo. Que construa suas dúvidas e certezas, seu único caminho. Único, não solitário, pois há muitas estradas que conduzem aos mesmos destinos. Mas que devem ser trilhadas com os próprios pés, não seguindo as pegadas dos outros.
Evidentemente, podemos e devemos fazer bom uso das placas dispostas ao longo da trilha. Por isso, de vez em quando, me arrisco a lançar uma conclusão ou outra, bem como a indicar fontes de pesquisa que explicam umas poucas coisas, ao mesmo tempo em que nos induzem a descobrir outras. E não deixo de defender minhas pautas: direitos humanos, liberdades individuais, Estado laico, redução da desigualdade social, transparência na gestão pública, emergência de novos modelos de participação política. Mas que continuem sendo minhas, e não de um “ismo” qualquer. Porque as quero livres, contagiantes, viralizantes, e não empacotadas. Que se afirmem por suas virtudes, e não por oposição a inimigos imaginários.

Pensei em encerrar dizendo que felizes são os que não precisam de gurus ou profetas. Pena que seria um fechamento enganoso, pois liberdade de escolha não é sinônimo de felicidade. Ser livre é apenas negar-se a viver como uma sombra ou marionete, rejeitar a mediocridade do caminho já trilhado. Por fim, há apenas uma coisa que posso dizer àqueles que procuram por uma estrela para seguir, ou por mandamentos para obedecer: libertem-se. A vida que vale a pena ser vivida não vem com manual de instruções.



sábado, 6 de dezembro de 2014

Os mais espertos da sala


As eleições passaram, mas a guerra continua. E a batalha que ocupou os noticiários na última semana é a proposta de “ajuste” da meta fiscal.
Resumindo o imbróglio: o Poder Executivo estabelece, a cada ano, metas de arrecadação e despesas para o exercício financeiro seguinte, por meio da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). O governo não pretende, em 2014, cumprir as metas que havia proposto na LDO. Assim, enviou ao Congresso (em novembro) um projeto de lei para modificar o sistema de cálculo da meta, incluindo como passíveis de abatimento no cálculo do superávit primário investimentos e desonerações que não estavam previstos na lei original.
Além da inusitada pretensão de estipular a meta depois de saber o que já foi cumprido, a tramitação do projeto nos reservou outras surpresas, incluindo a apresentação de um Decreto que aumenta a dotação parlamentar para emendas, desde que aprovada a mudança na LDO, e uma grande confusão entre grupos que protestavam no Plenário e os seguranças do Congresso.
Temos, assim, quatro temas em um: a expulsão dos manifestantes, a (in) conveniência do envio desse projeto no penúltimo mês do ano, o critério de “negociação” adotado pelo Governo, e, por fim, o mais espinhoso: que é “superávit primário”, e devemos mesmo nos preocupar com ele?
Sobre a expulsão: considero aceitável restringir o acesso de pessoas que realmente estejam atrapalhando, ofendendo, tentando obstruir no grito. Agora, isso seria em caráter de exceção. A regra é que o povo tem o direito de ocupar o Congresso. Mesmo se o “povo” no caso for a claque de um partido, de um sindicato, de uma ONG, ou um bando de viúvas da ditadura. Ser militante de uma causa, ainda que estúpida, não é hipótese de exclusão de direitos políticos. Botar todo mundo pra fora com truculência e depois votar com portas fechadas são atitudes que não combinam com nossas pretensões de sermos mais democráticos.
A segunda questão é quanto à conveniência de se alterar a LDO depois que ela foi aprovada. Não é a primeira vez que isso acontece, já foi feito por Lula, pela própria Dilma, até por FHC.
A história mostra que projeções econômicas se revelam equivocadas com frequência, às vezes por fatores imprevisíveis. Outras, porque o que chamaram de projeção era chute mesmo. Em todo caso, não concordo que as metas fixadas na LDO devam ser imutáveis. O ideal é que sejam mantidas, mas devem ser admitidos ajustes, se devidamente motivados. Difícil de aceitar é que a mudança ocorra no penúltimo mês do ano, com o exercício praticamente encerrado, para fazer conta de chegada. Denota, no mínimo, uma tremenda falha de planejamento.
A questão mais divertida é a terceira: dezessete dias depois de propor a alteração da LDO, o Poder Executivo enviou um Decreto liberando R$ 444.000.000,00 extras para emendas parlamentares, desde que aprovada a nova LDO. Quando vi isso, lembrei do seguinte trecho do livro “Brasil em Alta”, do jornalista norte-americano Larry Rohter:
“Uma coisa é um presidente (...) apoiar um projeto de um deputado de outro partido, em troca do seu voto (...): esse tipo de fisiologismo acontece em todas as democracias. Porém, no Brasil (...), também adotam práticas tais como (...) a compra descarada de votos.”
Assim parece até que evoluímos! Como estamos conseguindo combater um pouquinho a corrupção, as negociações do Executivo com o Legislativo precisam se tornar mais refinadas. Em vez da “compra descarada” de votos, troca de favores: vota esse que é bom pra mim que eu mando um bom pra você. Prática que, segundo Rohter, é comum em todas as “democracias”. Por que seríamos diferentes, se podemos ser iguais? Essa “venda casada” no apagar das luzes de 2014, portanto, tende a ser apenas uma pequena amostra do que pode acontecer daqui pra frente, na relação de um Executivo que parece forçado (e conformado) a ser “conciliador” com um Legislativo fragmentado e fisiológico.
Finalmente, a questão de fundo. O que é “superávit primário”? É o resultado do confronto das receitas não financeiras do governo (basicamente, impostos) e suas despesas não financeiras. Fazendo uma analogia com a vida cotidiana de um trabalhador, seria a sobra do salário depois de adimplidas as despesas básicas: saúde, alimentação, educação, moradia.
Numa análise superficial, parece lógico que é melhor sobrar do que faltar, e que o “superávit” seria desejável. A questão, porém, é muito mais complexa do que isso.
O objetivo de perseguir o “superávit primário” é o pagamento da dívida pública. Há mais de uma década, os planos orçamentários do governo devem ajustar as despesas à expectativa de arrecadação, de modo que sejam geradas diferenças positivas, os superávits, para honrar os encargos da dívida.
Para refletirmos sobre isso, vamos imaginar que somos chefes de uma grande família. E que herdamos dívidas. Por isso, precisamos controlar nossos gastos, economizar o máximo possível para amortizar essas dívidas. Porém, a renda que auferimos é limitada, os juros, altos, e as necessidades da família, muitas e crescentes. Vamos levando a vida assim até que um dia precisamos fazer uma escolha: alimentar os filhos ou pagar os juros do cartão de crédito.
Acredito que a maior parte dos pais não teria dúvida sobre o que escolher. E a escolha dos nossos sucessivos governos tem sido sempre, em primeiro lugar, pagar os juros do cartão de crédito.
“Ora, colocando assim, induz o leitor a pensar que é uma decisão errada. Mas quem deve tem que pagar. Por que ficou devendo, em primeiro lugar? Se não pagar agora, pode ficar pior depois. Tem que fazer sacrifícios, honrar os compromissos. Plantar para depois colher! Aliás, onde foi gasto o resto do dinheiro?”

Colocações pertinentes, difíceis de serem repercutidas na grandes mídia. Dá mais ibope mostrar um brucutu escorraçando uma velhinha raivosa. Desconfio, também, que quem comanda o espetáculo não tenha muito interesse em atiçar o povo (agora estamos falando do povo mesmo) com essas perguntas. Porque quem começar a procurar as respostas vai descobrir que tem muita gente se sacrificando há tempo demais, plantando para outros colherem. Que boa parte desses “compromissos” envolve interesses só confessados sob a benção das delações premiadas. Que existem dívidas maiores a serem pagas, algumas acumulando juros desde a chegada de Cabral. Mas essas continuarão esperando pelos trocados que sobrarem depois da fatia dos banqueiros; afinal, a lei manda que eles sejam sempre os primeiros da fila.



terça-feira, 18 de novembro de 2014

O dia depois de amanhã

“Essa aspiração se me afigura imoral e anárquica. No dia em que a convertêssemos em lei pelo voto do Congresso, teríamos decretado a dissolução da família brasileira.”
Parece o viúvo da ditadura ou um pastor qualquer pregando contra o casamento civil igualitário, não é? Nada disso, as palavras acima foram ditas por um parlamentar capixaba revoltado com a proposta do direito de voto para as mulheres durante uma sessão da primeira Assembleia Constituinte da República, em 1890.
O que esse trecho de discurso demonstra, além de escancarar o anacronismo de tantos que insistem em negar o presente para evitar o futuro, é que as coisas mudam. Por mais que possa ser difícil percebermos o fluxo da mudança, encarcerados que estamos num minúsculo pedaço do mundo, num átimo desprezível da história, ele está passando por nós, nesse exato momento. E podemos enxergá-lo, desde que saibamos para onde olhar.
Eu vejo a mudança em coisas que hoje consideramos pequenas, e vistas do passado seriam grandes conquistas, como votarmos em eleições diretas para Presidente da República pela sétima vez consecutiva. E a vejo também em coisas que sempre foram e sempre serão pequenas, nos espasmos agonizantes de minorias retrógradas que pedem menos direitos, menos povo, mais passado. Há até quem escancare o desejo de voltar às trevas e segure cartazes por “intervenção militar”. Já eram pequenos no passado, mesmo com o poder das armas; agora, são minúsculos e caricatos. Mas é bom que saiam do armário, porque para mudar de verdade precisaremos arrancar muitas máscaras.
E, se há alguma coisa realmente grande acontecendo, é que as máscaras estão caindo. Por mais que velhos atores ainda tentem se apegar a seus tão reprisados papéis, encenando um jogo em que não há corruptores, mas apenas corruptos, e estes estão sempre do “outro” lado, existe luz demais para que eles possam passar despercebidos por trás das cortinas.
Historiadores provavelmente elegerão um momento emblemático que marcará nosso rito de passagem para um novo país, com mais direitos, com verdadeira democracia. Em que vivenciaremos um nível de ética e de afirmação dos direitos individuais que, hoje, julgamos impossível. Mas, assim como o “Dia D” e o assassinato de Francisco Ferdinando, o marco escolhido terá mais valor romântico do que histórico.
Porque, no fim das contas, não terão sido as “diretas já”, nem a Lei da Ficha Limpa, nem os mensalões e petrolões. Não terão sido os negros e mulheres no STF, nem um retirante sem curso superior (ou uma mulher) na Presidência da República. Não terá sido junho de 2013, nem outubro de 2014. Não terá sido por causa do “homem do ano” que caiu do cavalo e agora está sendo julgado por crimes contra o mercado financeiro, enquanto dezenas de executivos saem algemados de empreiteiras. Não terá sido por causa de um Juiz do interior de São Paulo que, em 2011, autorizou o primeiro casamento gay do Brasil, nem por causa dos Ministros do STF que enjaularam os dirigentes do principal partido político do país. Não terá sido por culpa, ou por causa, desse partido, nem de nenhum outro. Mas será, ainda que ninguém esteja percebendo ainda, nem possa entender os motivos. Como poderíamos, se estamos olhando de dentro do redemoinho?
Não que eu creia numa “onda moralizante” após mais um grande escândalo, ou em muitas cabeças cortadas. Até duvido disso. Haverá, como sempre, muita impunidade, a começar pelos delatores, que já estão quase sendo tratados como benfeitores. Haverá corruptores se fazendo de “vítimas”, e gente acreditando neles. Interesses poderosos atuarão abafando explosões daqui, e reconstruindo pontes dali. Mas, desde que os primeiros tijolos viram o fundo do rio, já ficou claro que o novo caminho não poderá ser igual ao anterior.
Terá que ser melhor, eu digo. Pode ser pior, dirão os cínicos e pessimistas. Mas não será. Porque não somos os mesmos que éramos há cinquenta anos. Somos e seremos melhores. Temos muita coisa para destruir, e mais ainda a construir.
Claro que há incerteza e ameaças no caminho. Dias de tormenta, antes de noites com sol. Mas gosto de ver o país dando sinais de que caminha para um amanhã diferente. Adoro a verdade, ainda que tardia e pela metade; afinal, mesmo a metade é mais do que tínhamos. Aprecio as pequenas vitórias, porque elas nos dão força para continuar. Nos fazem acreditar que, finalmente, as vozes que até outro dia sussurravam envergonhadas, como se ser honesto fosse o único pecado abaixo do Equador, ecoarão como trovões. Que venha a tempestade.

“Dirão: "É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veio de Portugal". Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal. Eu repito, ouviram? Imortal! Sei que não dá para mudar o começo mas, se a gente quiser, vai dar para mudar o final!”
(Trecho final do poema “Só de Sacanagem”, autora: Elisa Lucinda)





sábado, 1 de novembro de 2014

A Exterminadora do Futuro

Claro que ninguém poderia prever, naquele fatídico 26 de outubro de 2014, que o resultado daquela eleição representaria, literalmente, o fim do Brasil. Nem mesmo na semana seguinte, quando as manifestações xenofóbicas e petições por separatismo e impeachment tomaram as redes sociais e, em menor escala, as ruas (uma passeata com 30 pessoas teria tomado a Avenida Paulista já no dia seguinte ao pleito), essa hipótese parecia sequer factível. Mimimi era o comentário mais comum de resposta ao grito dos revoltosos.
Todos apostavam que, passado o frenesi pós-eleitoral, a situação se acalmaria. Porém, uma série de atitudes impensadas da Presidenta reeleita, logo no início do seu segundo mandato, desencadeou uma série de revoltas populares, que desembocaram na então inimaginável guerra de secessão.
Até hoje não se sabe exatamente qual foi a fagulha que iniciou o incêndio. Alguns culpam um pacote de plebiscitos e decretos enviados pela Presidenta ao Congresso, que teriam como objetivo transformar o país numa Ditadura por meio da ampliação maciça da participação popular nas decisões de governo (?). Outros, a uma emenda no orçamento que destinava um extra de 0,003% das receitas de um tal “fundo de participação dos municípios” para o Nordeste. A tese mais aceita, porém, é de que a revolta só se instaurou mesmo quando foram anunciadas desonerações tributárias para equipamentos eletrônicos destinados ao consumidor de baixa renda, num programa batizado “Meu Tablet, Minha Vida”.
A população rica, instruída e trabalhadora do Sul-Sudeste, que precisava viajar para fora do país a fim de adquirir produtos sem pagar os escorchantes impostos brasileiros, que tolhiam sua renda e deterioravam cada vez mais sua condição de vida, não aceitou essa infâmia. No dia seguinte ao anúncio da desoneração, o Sul anunciou, no Facebook, sua separação. Um abaixo assinado virtual, lançado na mesma data, deu legitimidade e tornou irreversível o processo.
Nascia a Nova Argentina, formada pela união dos antigos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Para evitar futuros conflitos eleitorais, que pudessem levar a mais cisões, decidiu-se instalar a Monarquia. Ainda, considerando a renomada inapetência genética dos nascidos em solo brasileiro para gerirem os negócios do Estado, o Monarca teria que ser importado. Abriu-se uma enquete, cujo vencedor foi o Príncipe da Baviera. Seduzido por fotos da Oktoberfest e da Festa da Uva, o Príncipe interrompeu suas férias vitalícias numa estação de esqui alpina e aceitou assumir o trono da Nova Argentina.
O povo bandeirante logo seguiu o exemplo sulista. Porém, embora concordassem com a Monarquia, não viam necessidade de importar um nobre. A história do pujante Estado de São Paulo atestava a competência do puro-sangue paulista, principalmente quando ele era misturado com japoneses, chineses, coreanos, italianos, libaneses, fluminenses, e, quem diria, até com nordestinos.
Curiosamente, os movimentos revolucionários mais fortes se concentraram no apoio não a paulistanos históricos, mas a dois radicados: o artista, comediante e parlamentar Tiririca, e o cantor, escritor e filósofo Lobão. Tiririca, oriundo do Ceará, ex-palhaço de circo, tinha pouco estudo mas muita popularidade: acabara de conquistar, pela segunda vez, a maior votação do estado para a câmara federal. O carioca Lobão, após uma juventude turbulenta, com seguidas detenções por porte de substâncias psicoativas, se convertera em um ícone do movimento liberal. Sua heróica resistência às tentativas de instauração da ditadura bolivariana no Brasil inspirava a elite social e intelectual do país.
Porém, apesar da fama de Lobão, os seguidores de Tiririca eram mais numerosos. Numa rápida investida, tomaram o Palácio dos Bandeirantes e expulsaram de lá o governador. Só então perceberam que haviam se esquecido de um detalhe: onde estava o líder da revolução? Enquanto a cúpula debatia como manter o controle enquanto seu Messias não era encontrado, foram surpreendidos pela augusta figura do “Deputado Francisco Everardo” ao vivo na tevê. Informado pelo repórter de que estaria sendo aguardado em São Paulo para a coroação, Tiririca disse: “Ô abestado, mas quem qui disse qui ieu quero ficá lá cum aqueles doido? Si vão dividí mermo o Brasir, perfiro vortá pro meu Ceará!”
A desmobilização foi instantânea. O trono, assim, caiu no colo de Lobão, que adotou a alcunha de Woerdenbag I, Imperador Bandeirante.
Esperava-se uma forte reação do governo central ao movimento separatista. O que não aconteceu. Numa decisão surpreendente, a Presidenta Dilma abdicou do cargo e partiu para exílio voluntário na Bulgária. Na carta de renúncia, ela se declarou “chocada com as notícias vindas do Sul e de São Paulo, e, principalmente, com as fortes discussões nas redes sociais que desfazem amizades e semeiam a discórdia entre famílias. Retiro-me, assim, pelo bem maior.” Relatos não oficiais, contudo, sustentam que ela na verdade estaria “de saco cheio de tanta frescuragem”.
Na Bulgária, Dilma também foi eleita mandatária da nação, e finalmente concretizou seu sonho de outorgar uma Constituição Bolivariana. Mas, isso não tem grande importância para nossa história.
Com a renúncia da Presidenta, e a consolidação da Nova Argentina e do Império Bandeirante, nada impedia a fragmentação do restante do território brasileiro. As regiões Norte e Nordeste se uniram ao Rio de Janeiro e Espírito Santo para formar Cuba do Sul, sob a liderança do mitológico Presidente Lula.
No planalto central, como de hábito, ninguém sabia para onde ir ou o que fazer. Aproveitando-se do abandono da capital, os discípulos de Inri Cristo se uniram aos integrantes de uma comunidade hippie da Chapada dos Veadeiros e dividiram o território. Inri Cristo tomou o Palácio do Planalto, e os hippies, o Congresso Nacional. Como eles chegaram numa sexta-feira, não houve qualquer resistência. E assim, por obra do acaso, surgia um regime inédito no cenário mundial, a Teocracia Parlamentarista Libertária da Grã-Ordem Kavernista.
Havia, então, um único vazio de poder: Minas Gerais. Os mineiros tentaram se incorporar ao Império Bandeirante, mas o Imperador Woerdenbag os rejeitou, alegando que “não ia dar mole pra infiltração comunista”. Sem opção, acabaram se emancipando a contragosto. A República das Alterosas elegeu como líder provisório o candidato derrotado por Dilma na disputa presidencial, Aécio Neves. O reinado de Aécio, porém, foi brevíssimo. Após uma semana, por motivos até hoje não esclarecidos, ele fugiu em direção ao Rio de Janeiro, e requisitou asilo político em Cuba do Sul.
Aécio esperava ser perdoado por suas antigas desavenças com Lula, obter a cidadania cubano-sulista e abandonar a vida pública. Tudo que desejava era voltar ao seu modesto apartamento no Leblon. Porém, a imberbe nação de Cuba do Sul não podia se arriscar a um incidente diplomático desse porte, e negou o pedido. Aécio deveria voltar a Minas.
Desse ponto em diante, ele desaparece dos registros históricos. Com exceção de um boato de que teria sido visto a caminho de Brasília acompanhado do também ex-candidato à presidência Eduardo Jorge para se juntarem à Grã-Ordem Kavernista, nada mais se ouviu dele. É como se Aécio tivesse virado pó.
Gostaria de terminar este relato dizendo que a separação, ao fim, foi pelo bem geral da nação. Mas do ponto em que escrevo, vinte anos depois dos traumáticos acontecimentos narrados, essa seria uma visão falaciosa. Com exceção de Cuba do Sul, que prospera sob a liderança do Presidente Eterno Lula (que, aos 90 anos, caminha para um surpreendente sexto mandato), os demais Estados soberanos continuam aquém de suas potencialidades. A República das Alterosas, após superar a turbulência provocada pela fuga de Aécio, se firmou como um país pacífico e produtivo. Mas a falta de uma saída para o mar estrangula os produtores locais, que são obrigados a pagar taxas abusivas para usarem os portos de Cuba do Sul. 
Por falar em sul, a Nova Argentina se tornou berço de gente mansa, indolente e sem ambição. Alguns creditam essa mudança à influência nociva do Príncipe da Baviera, que se revelou nada mais que um bon vivant. Outros afirmam que o Sul já cumpriu seu projeto histórico se separando dos selvagens, e agora nada mais há a se fazer.
Espírito semelhante habita o território Grã-Kavernista, que regrediu a um modelo econômico pré-colonial. Isso gerou grande satisfação do povo indígena, que hoje ocupa boa parte do cerrado.
Sim, ainda não falei do Império Bandeirante. Infelizmente, nada sei sobre eles. O Imperador Woerdenbag há muito fechou as fronteiras e proibiu qualquer contato com o mundo exterior, para "proteger os súditos do perigo da disseminação de ideário subversivo”. Do fundo do coração, espero que estejam bem.



segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Conta Comigo

Tem uma palavra martelando na minha cabeça há alguns dias: “pertencimento”. Palavrinha feia, até, mas que explica muito sobre o modo como levamos nossas vidas. Gostamos de estar com outras pessoas, de sentir que somos parte de algo maior. Por isso nos reunimos em comunidades, clubes, associações. Escolhemos times de futebol e partidos políticos.
Podemos encontrar explicações sobre esse comportamento nos mais variados ramos da ciência. Mas, entre a biologia e a metafísica, fico com Tom Jobim: é impossível ser feliz sozinho.
Essa noção de “pertencimento” me alcançou, não por coincidência, depois que escrevi sobre meu voto no segundo turno, e comecei a reparar em outros textos com o mesmo tema. Destaco o de Gregório Duvivier. Recomendo a leitura, mas já adianto a conclusão do autor: “Se quem defende causas humanitárias e direitos civis é chamado de petista, não me resta outra opção senão aceitar essa pecha.”
Pressionado a escolher um lado, Duvivier fez uma opção. Assim como eu havia feito, antes dele. Mas dicotomias quase sempre são falaciosas, e podem nos induzir a conclusões apressadas e falhas. Por isso, resolvi considerar uma segunda opinião, e analisar um pouco o grupo ao qual tinha decidido me opor.
Após isolar os casos crônicos  e potencialmente contagiosos de petefobia, identifiquei duas motivações razoáveis para o voto no candidato de oposição. Alguns acreditam, genuinamente, que com o PSDB no governo teremos mais crescimento econômico e, por conseguinte, um país melhor para todos. Outros não acreditam tanto nisso, mas acham importante a “alternância de poder”.
Discordo das duas premissas. Considero a primeira equivocada, e a segunda, ingênua. Mas admito a possibilidade de estar enganado. Sempre há uma chance, de sei lá, 0,01%. Em todo caso, estaríamos no campo das diferenças de opinião e de ideologia. Posso conviver com isso.
Não posso, porém, conviver com o discurso do ódio, tão difundido por aqueles que, imagino, não irão votar na “vaca”, na “fdp”, na “terrorista”.
Não posso concordar com pessoas que ignoram o profundo abismo social que ainda existe no Brasil e vociferam contra o “bolsa esmola”.
Não posso aplaudir o preconceito de classe, insuflado e escancarado de forma bizarra pelo ex-presidente, na sua indulgência com os brasileiros que vivem nos “grotões” e que não conhecem a Verdade, não por serem pobres, mas “mal informados”. Assina a Veja pra eles, sociólogo!
Não posso encarar como simples brincadeira, ou exercício da “liberdade de expressão”, manifestações vis e criminosas como essa: “70% de votos para Dilma no Nordeste! Médicos do Nordeste, causem um holocausto por aí!
Não posso me alinhar a quem trocaria todos os programas sociais do governo, que tiraram milhões de pessoas da fome e da miséria, por um descontinho no seu próprio imposto de renda e uma queda no preço do dólar, que lhes permita encher mais as bolsas na próxima viagem para Miami.
Não posso aceitar a homofobia, a intolerância e a incompreensão.
Não posso unir forças com quem sente “saudades” da ditadura militar. Com aqueles que querem enjaular, prender a postes ou assassinar crianças e adolescentes pobres, cujo maior pecado foi terem nascido do lado errado do Equador, no meio de um povo que acha mais cômodo sacrificá-los do que cuidar deles.
“Ah, mas eu vou votar no Aécio e não concordo com nada disso!”
Pela primeira parte, meus pêsames. Pela segunda, não faz mais do que a obrigação.
Acredito, mesmo, que a maioria dos eleitores do PSDB viva no século XXI e não comungue com essas ideias. Mas, após muito pensar, descobri que não conheço ninguém que concorde sequer com uma dessas sandices e vá votar em Dilma Rousseff. E que conheço muitas pessoas que vomitam periodicamente uma ou mais dessas besteiras, e todas votarão em Aécio Neves.
Não partilho da empáfia de FHC para afirmar que pensam assim porque seriam ignorantes, ou “mal informados”. Não me importo, na verdade, com os motivos. Apenas me reservo o direito de pensar diferente. E de afirmar essa diferença com firmeza, com absoluta convicção.
Sob essa perspectiva, fica fácil decidir. Olho para frente e vislumbro duas estradas. Acredito que uma delas conduz a um amanhã melhor do que hoje. A outra, direto para um passado ao qual não desejo retornar. Acredito, mas não tenho certeza. Talvez seja ao contrário, ou as duas levem ao mesmo lugar. Ninguém sabe, ninguém pode saber. Não até que aconteça. O destino é incerto. Mas, se há uma coisa que sei acima de todas as outras, é ao lado de quem desejo caminhar.



sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O lado bom da vida


Marina disse que anunciaria na quinta-feira sua posição no segundo turno, mas já mudou de ideia sobre isso. Lá nos fundos, o Pastor Everaldo continua defendendo o casamento entre homem e mulher. Em primeiro plano, a turma do bico amarelo segue se digladiando com os militantes da estrela vermelha. Porém, mesmo com tudo parecendo igualzinho, o futuro não é mais tão bacana como na semana passada. O elenco da novelinha mais legal de 2014 se reduziu a apenas dois personagens, e agora não tem jeito, vamos ter que assistir a um filme repetido.
Se há um ponto positivo, é que com apenas duas opções fica menos difícil escolher. E não vou ficar em cima do muro. Depois de pouco pensar, enumerei os motivos principais da minha escolha, que agora compartilharei com vocês. É uma lista singela, mas cada uma dessas coisas tornou a minha vida mais plena, divertida e luminosa nos últimos doze anos. Os motivos podem ser um tanto egoístas, reconheço; mas para quem não gostar deles, eu tenho outros. Sem mais delongas, portanto, apresento as dez coisas que aprendi a amar, ao ponto de não saber como viveria sem elas:
1.  Previsões regulares de hecatombes bíblicas, marcadas sempre para o “ano que vem”, ou, na melhor das hipóteses, para o próximo mandato presidencial. Se eles não transformaram isso aqui na Coréia do Norte até hoje, dos próximos quatro anos não passa!
2. O sentimento renovado de alívio, ano após ano, quando a tão esperada catástrofe não chega. O apocalipse zumbi, por enquanto, continua só em "The Walking Dead".
3. Olavetes e constantinetes se borrando de medo da “ameaça comunista”, da “revolução bolivariana”, e de praticamente qualquer coisa pintada de vermelho. Mesmo que seja uma ciclovia.
4. O compartilhamento em loop infinito do vídeo em que o Barbudão declara que sempre foi preguiçoso e nunca gostou de estudar. Quem pode ficar um dia sem ver de novo esse brilhante e inspirado discurso?
5. Lobão, Roger e Danilo Gentili promovidos a intelectuais, ícones do pensamento liberal. Imagina se voltássemos aos anos 80 no DeLorean de Marty McFly para anunciar que Lobão se tornará um filósofo, ainda por cima, de extrema-direita. Imponderável, inacreditável, fantástico.
6. A eternização dos efeitos benéficos das reformas mágicas do catedrático FHC, que continuam mantendo o país de pé até hoje.
7. As sentenças quilométricas e rocambolescas da Presidenta. Tudo bem que a Marina se expressa de forma ainda mais incompreensível, mas com muito menos classe. E, ademais, ela já foi jogada pra escanteio mesmo.
8. Como decorrência direta do item anterior, o advento da bem afortunada Patrulha em Defesa da Língua Portuguesa, sempre pronta a pegar no pé da estimada líder a cada erro de concordância. No tempo da minha avó, isso se chamava falta de serviço. Mas, com o excesso de benefícios assistenciais sustentando a população ociosa, hoje sobra tempo até pra isso.
9. O aumento do nível de exigência da sociedade, evidenciado na crescente revolta de pessoas que andam de carro zero, viajam pro exterior duas vezes ao ano, mas vivem reclamando que o país está no buraco.
10. A manutenção dos baixos índices de desemprego. O que fariam, em um novo governo, esse monte de colunistas que ganham a vida só falando mal do PT? Veríamos um fechamento generalizado de revistas, sites, jornais, pela falta absoluta do que publicar. Acho que nem na época da ditadura tivemos uma ameaça tão iminente aos nossos veículos de mídia.
Enfim, malgrado meus vieses pessoais, não creio que a nossa sociedade esteja preparada para abandonar a petefobia. Ou, de repente, sou apenas eu não querendo ficar sem toda essa diversão. Mas, seja pela minha própria felicidade ou pelo bem geral da nação, já resolvi que no dia 26 vou sair de vermelho.


sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Um domingo qualquer

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No próximo domingo, 05 de outubro, não vamos ao Maracanã. Mas um navegante desavisado, ao conferir as manifestações nas ruas e redes sociais, bem poderia achar que essas siglas com “P” são de times de futebol, tal o fanatismo que alguns empenham na defesa dos seus candidatos – ou, até com mais frequência, no ataque aos outros.
Embora não tenha a mínima intenção de entrar nessa, até por nenhum candidato me empolgar ao ponto de provocar esse nível de engajamento, acho até positivo que as pessoas manifestem suas preferências. Há, porém, uma série de coisas que me incomoda no modo como isso acontece em período eleitoral.
O primeiro é o já citado “futebolismo”. Não é política, estúpido, são eleições. A quase totalidade das pessoas que se manifesta nessa época não está disposta a debater sobre nada. Querem apenas falar bem dos seus candidatos e mal dos outros. Agem, assim, do mesmo modo que os políticos cujas práticas atacam: vale tudo, desde que seja pro meu preferido vencer. Porque ele é muito melhor que os outros e, com ele, agora vai.
Não descarto a possibilidade de que essas pessoas, que às vezes parecem estar babando de fúria ao discutir “política”, estejam com as melhores intenções. Que realmente acreditem no virtuosismo dos seus eleitos, e depositem neles a esperança de uma retumbante redenção para o nosso tão castigado país. No fundo, gostaria de acreditar nisso também. A vida seria bem mais fácil, eu sairia compartilhando dezenas de memes no facebook e no domingo iria todo feliz para a maquininha, apertar “xx”. Mas o realismo ingênuo, infelizmente, ainda não conseguiu me capturar ao ponto de eu ter absoluta certeza sobre nada. Assim, sou incapaz de replicar certos comportamentos e sair afirmando que quem vota no candidato “b” é idiota, quem vota no “c” só pode ser alienado ou corrupto, e coisas desse tipo. Para aqueles que vivem bem com essas certezas, vou sugerir o oposto do que certa candidata sugeriu a um comediante que se acha intelectual: não estudem. A ignorância é uma benção. Mas, se não tem a mínima ideia do que é esse tal “realismo ingênuo”, e quiserem entender um pouquinho, sugiro que iniciem por esse texto, Dysrationalia e os vieses da razão.
Passo ao largo, portanto, tanto do fanatismo como da ilusão. Não deixo de ter, claro, predileção por alguns candidatos, maior aversão por outros. Mas não enxergo, principalmente nos postulantes à Presidência com chances reais de serem eleitos, diferenças tão grandes que me façam acreditar, nem por um momento, nas profecias do apocalipse da oposição, nem no futuro brilhante prometido pelos governistas. O que acredito é que o futuro do país depende muito mais do que faremos, como sociedade, do que dos números que apertaremos na maquininha. E dessa crença decorre o principal motivo do meu incômodo com a transformação da política em Fla x Flu. 
Não se preocupem militantes, não é um incômodo nível Levy Fidélix, não acho que vocês tenham que se tratar numa ilha. Ao contrário, gostaria é que continuassem dando as caras, demonstrando essa disposição também fora do período eleitoral. E, talvez, com os ânimos menos inflamados, direcionassem a energia não só para defender um ou outro partido, mas para atuar politicamente de verdade. Discutindo ideias, e não batendo boca. Participando de associações de classe, de ONGs, até de partidos políticos, se tiverem estômago. Fiscalizando a atuação dos políticos que elegemos. Acompanhando as contas públicas. Combatendo a corrupção e os maus hábitos no cotidiano, em vez de apenas compartilhar denúncias de “escândalos”. Abraçando bandeiras universais, como os direitos humanos, o combate à intolerância e ao preconceito. Enfim, fazendo qualquer coisa que tenha a mínima probabilidade de ser construtiva. Até escrever num blog vale. :)
Sinceramente, desejo que isso aconteça muito mais do que “torço” pela vitória de qualquer candidato. Mas, como caí na besteira de escolher a pílula vermelha, sei que não é assim que vai ser. Até domingo, e depois, havendo segundo turno, as pessoas continuarão enxergando anjos e demônios. Pouco depois, irão tomar conta das próprias vidas, até as próximas eleições, quando elegerão novos salvadores da pátria.
Pois, para mim, esse domingo não será muito diferente de qualquer outro. Sim, o que for decidido no domingo valerá pelos próximos quatro anos. Mas não importam os nomes que saiam daquelas urnas, não é neles que está o poder de transformar o país e melhorar as nossas vidas. Só nós podemos fazer isso. Mas dá muito trabalho, então, é melhor ficarmos brigando uns com os outros a cada quatro anos.


sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Mentes que brilham, parte 2


O texto mais lido do blog até hoje foi dedicado à análise do sistema tributário nacional, na qual destaquei a sua nefasta regressividade. Traduzindo: no Brasil os mais ricos pagam, proporcionalmente, menos impostos do que os mais pobres.
Pesado, injusto, labiríntico, hiper-normatizado. O sistema tem tantos defeitos que não é de se estranhar que reforma tributária seja um tema contumaz nas discussões sobre os rumos do Estado. Reclamamos da carga tributária dia sim, o outro também. E será que os atuais presidenciáveis estão dispostos a fazer algo nesse sentido?
Veremos, começando pelos representantes dos partidos que governaram nos últimos vinte anos. Nenhum dos dois propõe redução da carga. O PSDB afirma que “O Brasil é um país de elevada carga tributária”, em seguida expõe que “aumentar a carga deixou de ser uma opção viável” (Rolando Lero assinaria essa), e conclui que “é possível avançar na redução do número de impostos e contribuições.” Ou seja, a carga permanece a mesma, numa estrutura mais enxuta. E como seria a proposta de simplificação?
Não está escrita em lugar nenhum. Querem montar uma Secretaria Extraordinária para elaboração do projeto de simplificação!! Mas não é esse candidato que repete o tempo inteiro que tem muito ministério, muita secretaria, que precisa cortar? E ele propõe inventar mais um cabide de emprego, sob o pretexto de montar um projeto que deveria estar pronto desde ontem, para ser debatido na eleição?
Mas, calma, ele já tem algumas ideias em gestação. Corrigir a tabela do IR (jenial, hein?), criar um “cadastro único” e agilizar o aproveitamento de saldos credores acumulados junto ao fisco. Essa última acho melhor nem comentar.
Com certeza a candidata oficial fará um ácido contraponto. Afinal, todo mundo sabe que PT x PSDB é o Fla x Flu da política nacional. Infelizmente, nesse caso particular parece que misturaram as camisas no vestiário. Tudo que a Presidente propõe é “simplificação tributária” e “debater a estrutura tributária”. Para ficarem idênticos e fazerem ainda mais jus ao apelido de irmãos siameses, só faltou Dilma criar uma Secretaria para estimular esse debate.
Por incrível que pareça, após ler essas “propostas” quase recuperei um pouco de fé na classe política. Sim, pois esperava encontrar promessas de redução da carga tributária, racionalização econômica do sistema. O que seria o cúmulo da cara de pau, já que os dois juntos elevaram a carga em quase oito pontos (em % do PIB, sendo 4,03% nos oito anos de FHC, e 3,78% nos onze anos de Lula/Dilma), editaram uma infinidade de normas, e jamais adotaram qualquer medida efetiva para reverter a regressividade. Não fizeram, e admitem que continuarão sem fazer. Pelo menos foram coerentes.
Falando de coerência, Marina também passou por aqui. E com propostas mais ousadas, que fogem da agenda cartesiana de governo. Ela promete uma reforma com base nas seguintes diretrizes: não-aumento da carga, simplificação, eliminação da regressividade (oba!), blá blá, pula essa parte, melhor repartição das receitas.
Supondo que essas propostas ainda estejam no programa de governo dela (porque já tem uns dois dias que acessei), são bem mais promissoras do que a confessada intenção de nada fazer de petistas e tucanos. Alguém fez pelo menos parte da lição de casa. Mas faltou muito para a nota dez. Marina também evita falar em redução da carga, é “não-aumento”. Onde foi que ouvi isso antes? Soa melhor do que “manutenção”, mas realmente detesto jogos de palavras que partem da premissa de que o (e)leitor é idiota. Certo, isso é um problema só meu, vamos adiante.
O que realmente preocupa no programa do PSB é que, quando vão detalhar as (poucas) medidas que sugerem, só falam em reduzir, desonerar. Ora, se o bolo vai ficar do mesmo tamanho, e só dizem o que pretendem cortar, de onde vai sair o resto do dinheiro? Que parte do plano estão escondendo? Ou não há plano algum?
Eduardo Jorge não tem nada a ver com isso, e manda um papo bem mais reto. Não vai aumentar a carga. Se puder, vai ver se descola umas gambiarras pra reduzir. E tem uma bala de prata no gatilho: o “imposto único arrecadatório sobre movimentação financeira”, um tipo de CPMF tratada com esteróides anabolizantes. Caso alguém não se lembre, a CPMF era um tributo que incidia sobre qualquer movimentação bancária, cuja última alíquota foi de 0,38%. A proposta do “imposto único” sugere uma alíquota de 2,81%. Se a  antiga alíquota já estimulava soluções criativas (empresas carregando malas de dinheiro, cheques endossados 419 vezes), imagino o que aconteceria com essa de 2,81%. O cidadão ia preferir fazer exame de próstata a colocar um centavo no banco. Acho que veríamos um deslumbrante revival da economia do escambo. Isso, para não citar que toda a arrecadação nacional estaria sob controle das instituições financeiras. Desculpa Mito, mas nessa não dá para fechar com você não. Passa a vez.
O espaço está acabando, então vou olhar só mais uma proposta. Putz, ainda tem mais sete candidatos, deixa sortear um aqui... hum, Luciana Genro.
A proposta do PSOL tem, basicamente, só uma diretriz: mudar a estrutura de regressiva para progressiva. Ah, para punir quem é rico! Como em Cuba e na Coréia do Norte, não é? Olha, não tenho a mínima ideia sobre como funciona o sistema tributário desses dois aí. Mas sei que nos Estados Unidos, na Austrália, no Japão, na Alemanha, enfim, em países fãs do livre mercado e com alto IDH, a carga é progressiva. Então, quem relaciona tributação justa com “ameaça comunista” devia estudar mais.
Em todo caso, até aí não fizeram grande coisa. Qualquer um que estude minimamente o assunto diria que é uma diretriz óbvia. Pois é, mas os únicos que disseram o óbvio foram o PSB e o PSOL. E o PSOL foi além, pois explicou como pretende realizar isso:
1. Modificação do sistema de alíquotas, para que os ricos paguem proporcionalmente mais impostos do que a classe média e os pobres;
2. Eliminar boa parte das desonerações;
3. Tributar mais o capital do que o trabalho;
4. Instituir o IGF, imposto sobre grandes fortunas, que está há 26 anos na lista de “coisas que estão na Constituição mas que não era pra fazer de verdade”;
5. Eliminar subsídios em financiamentos para grandes empresas e grupos econômicos; ou seja, reverter a lógica pela qual opera o BNDES, que privilegia os “amigos do rei”;
6. Acabar com o financiamento público para empresas estrangeiras;
7. Maior tributação do setor primário, inclusive com impostos específicos sobre a exportação.
Podemos concordar ou discordar das propostas. Eu, por exemplo, simpatizo com as cinco primeiras e vejo com desconfiança as duas últimas. Para os fins a que me propus neste artigo isso é irrelevante, cada um que faça seu juízo de mérito. O ponto fundamental é que o PSOL, que certamente não vencerá as eleições, e sequer tem força no Congresso para negociar uma reles lei complementar, foi o único partido a apresentar ideias concretas, passíveis de serem debatidas pela sociedade.
Assim, o que concluí não foi apenas que, se depender desses políticos, continuaremos esperando pela reforma tributária. Até porque isso eu já sabia. O interessante é que, talvez por estarem escaldados pelos protestos de 2013, os principais candidatos não querem nem tocar no assunto. Vai que alguém presta atenção e resolve comprar o barulho.
Sim, houve uma exceção, Luciana Genro. Mas, como sabemos desde o primeiro debate, ninguém pergunta nada pra ela.




quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O Retrato de Dorian Gray


Há dezessete dias das eleições, tudo soa como filme repetido. Um partido acusa o outro de corrupção e incompetência, alguns acusam todos. Outra se faz de desentendida, embora não chegue a dizer que não tem nada a ver com isso. A cada debate, uma enxurrada de memes. Analistas se debruçam sobre os discursos dos três principais candidatos, embora não tenham nada de novo a dizer sobre eles. E passa ao largo da crônica especializada a questão que mais me intriga: o mísero percentual de 1% das intenções de voto atribuído ao presidenciável Everaldo, codinome Pastor.
Eu sei, mal começou o texto e vocês já acham que eu estou de sacanagem. Garanto que não. E para deixar bem clara a natureza realíssima do meu assombro com o 1% do pastor, resumirei os motivos que me levam a crer que ele deveria ter uma votação bem mais expressiva.
Li as propostas do candidato e acompanhei suas performances nos debates. Everaldo apresenta um cardápio de ideias bem definido. Defesa do conceito “tradicional” de família: não vale homem com homem nem mulher com mulher. Contra a regulamentação de qualquer droga, além, claro, das muitas que já estão legalizadas. Descriminalização do aborto, nem se pode discutir. No campo econômico, a solução é simples: privatizar tudo. Para melhorar a segurança pública, reduzir a idade penal e liberar o porte de arma. Tudo em defesa da vida e das famílias. Amém.
Por mais que a minha amostragem possa ser viciada, estimo em bem mais de 1% a quantidade de pessoas que tem a mesma opinião dele a respeito de todos esses temas.
Antes de começarem a precipitar juízos de valor sobre meu círculo de conhecidos (no qual a esmagadora maioria dos leitores, ei você, se inclui), esclareço que essa estimativa inclui pessoas que não conheço pessoalmente, “anônimos” da Internet, contatos de conhecidos que comentam e compartilham coisas nas redes sociais. E os convido a refletir, se percebem, assim como eu, que há muita gente comprando esse barulho, pregando os mesmos salmos do pastor. E talvez, após essa reflexão, entendam meu espanto: se tantos pensam (ok, pensar não é o melhor verbo aqui, mas nenhum outro me ocorreu) como Everaldo, por que tão poucos afirmam que votarão nele?
A primeira hipótese que testei foi a de que os eleitores ainda não conhecessem o candidato. Mas a abandonei ao lembrar que antes do início da campanha o pastor alcançava índices superiores nas pesquisas, entre 3% e 5%. Portanto, tornar-se mais conhecido fez com que ele perdesse votos. Que paradoxo!
Com o horizonte cada vez mais nebuloso, parti para a segunda hipótese: outros candidatos que defendem as mesmas bandeiras, com mais eficiência, estão atacando seu nicho de mercado. Ledo engano. Algumas das propostas até encontram eco nos discursos dos oponentes, em especial as que envolvem os temas mais caros aos dogmas religiosos. Mas o pacote completo, com ênfase e convicção? Só mesmo o pastor. Ah, e Eymael, o democrata cristão, o homem que enfrentou os fariseus e não deixou tirarem o nome de Deus do preâmbulo da Constituição. Mas não encontramos nenhum voto com ele, para que pudéssemos acusá-lo de ter roubado do pastor. Assim, o mistério continua.
Como o mero exercício da reflexão mostrou-se infrutífero, resolvi ir a campo. A terceira hipótese seria construída empiricamente. A fortuna me colocou frente a frente não com apenas um, mas com dois indivíduos que eu supunha que compartilhavam do ideário de Everaldo. Fiz um rápido teste, submetendo ao seu escrutínio as propostas do pastor. Casamento gay? Jamais! Privatizar? Genial! Reduzir a idade penal? Passou da hora!
Esgotei os temas, com o resultado que previra: 100% de concordância. Qual não foi minha surpresa com a reação dos dois quando anunciei: considerando suas respostas, trago boas novas. Há um candidato perfeito para vocês: o pastor Everaldo!
Pois é, não me agradeceram. Sequer reconheceram o esforço da minha pesquisa. Encararam como piada! Aumentou minha confusão. Qual a graça? Eu bem que gostaria se houvesse pelo menos um candidato com que eu concordasse em tudo. E vocês tem. Por que não votariam nele?
“Porque ele não tem chance de vencer”, responderam. Assim não terá mesmo, nem vocês, que concordaram com todas as propostas, vão votar nele! Argumentei que poucos votos transmitirão a mensagem de que as ideias de Everaldo não tem apoio da sociedade. Seguiram-se algumas respostas evasivas, desqualificando o pastor sem qualquer base lógica, adjetivando-o de “folclórico” e outras coisas mais. Continuei sem entender os reais motivos da rejeição ao candidato.
Mesmo com a experiência frustrada, não desisti de buscar a resposta. Se ela não pode ser alcançada pela lógica, restam a abstração e a fantasia. Ou, como diriam os super-leitores (quem não entendeu, tenha um filho, por favor, e volte daqui a dois ou três anos), a resposta está num livro! Ou num filme, se tiverem preguiça de ler.
Dorian Gray (na foto, do filme de 2009, interpretado por Ben Barnes) é um personagem de Oscar Wilde. No romance, ambientado na Inglaterra da era vitoriana, Dorian, ao contemplar-se jovem e belo numa pintura, deseja jamais envelhecer. Diz que daria a própria alma para que, ao invés de agir sobre ele e deixar o retrato incólume, o tempo agisse sobre o retrato. E assim acontece. O rosto na pintura vai se tornando velho e feio, refletindo não apenas a passagem do tempo, mas também os pecados de Dorian. Que seguia jovem, mas experimentava crescente repulsa pela sua imagem real.
Dorian escondeu seu lado negro no retrato, e o mantinha trancado num quarto, para que ninguém pudesse ver como ele realmente era. Os everaldinhos até deixam seus preconceitos e arcaísmos saírem para passear pelos corredores, vestidos de Bolsonaros e Felicianos. Mas não parecem dispostos a expô-los na sala principal. Talvez, assim como Dorian Gray, no fundo eles próprios sejam os que menos querem encarar sua verdadeira face.