Quando a alternativa é a danação eterna, não é preciso oferecer
muito para se vender como paraíso. Porém, por mais que eu possa condenar (e
condeno) a teologia do castigo, é inegável que a oposição entre céu e inferno
faz algum sentido. Pelo menos ambos competem na mesma arena: são elementos que se inserem,
juntos, numa narrativa mitológica.
Não tenho medo do inferno, nem espero pelas recompensas do paraíso
(e quem se importa com o que eu penso?). Minha descrença de fato é irrelevante,
exceto para reforçar a estranheza da conclusão a que cheguei: ofende menos a
lógica acreditar em qualquer mitologia religiosa do que em certos argumentos
utilizados para justificar as mais nefandas práticas terrenas. Porque as
mitologias exigem apenas que pratiquemos a fé, aquela velha mania de crer no
que não se pode provar. Mais poeticamente, que acreditemos no impossível. Para
quem crê, haverá um pote de ouro no fim do arco-íris. Os defensores do
indefensável pedem mais, que neguemos o real, ou o percebamos não em si, como
aquilo que aconteceu, mas apenas em oposição com o imaginário, com o que não
aconteceu.
Assim se justificam, por exemplo, os crimes cometidos pela
ditadura militar que já foi chamada até de “ditabranda”: eles foram necessários
para evitar crimes ainda piores, que com certeza seriam cometidos pelo regime sanguinário
que existiria, se não tivesse existido o regime sanguinário que existiu.
Assim tentam nublar escândalos de corrupção, afirmando que as
denúncias servem a interesses de “forças ocultas”, que pretendem implodir a
abençoada estabilidade de que desfrutamos e destruir a imagem do nosso país,
para depois servi-lo à rapina dos imperialistas.
Assim persistem os discursos de intolerância e preconceito,
injustificáveis por si, mas que se fortalecem cinicamente marcando oposição a
uma imaginária “ditadura das minorias”.
Assim seguem ganhando eco vozes que já foram sufocadas no passado,
que pregam desde o retorno à Lei de Talião até um “novo conceito” para o termo
escravidão. De nada importa que a realidade já os tenha derrotado antes. Sempre
haverá moinhos de vento para os que se dispõem a serem quixotes.
É fácil entender por que essa técnica de
persuasão é tão eficaz. Para todo mal que se faça, sempre haverá a possibilidade de um mal
maior. Não há argumento de lógica que resista a um ato de fé. Temos, assim,
duas opções: insistir em contrapor o racional ao emocional, a ciência à crença,
o real ao imaginário; ou simplesmente aceitar que as pessoas acreditam no que
querem acreditar. Conformar-nos com o fato de que, talvez, não seja possível
demovê-las da paixão pelo ilusório, mas apenas confrontá-las com o real.
Portanto, deixemos os devaneios, paranoias e ilações sobreviverem
nas mentes daqueles que os abraçam. Não importa. Não precisamos negar que havia
o “risco” de que se instalasse aqui uma ditadura ainda pior do que a que houve.
Ufa, ainda bem que não aconteceu. Só que o alívio de termos escapado desse
terrível destino não faz com que um estado (nesse caso é com letra minúscula
mesmo) que patrocinou sequestros, torturas, assassinatos e exílios, dentre
outros delitos “menores”, deixe de ter sido vil, abjeto e criminoso.
Do mesmo modo, a possível existência de interesses políticos e
financeiros puxando as cordinhas dos atores e delatores dos escândalos de
corrupção não absolve os corruptos. O medo de ser oprimido no futuro não dá a
ninguém o direito de ser opressor no presente.
Basta
reconhecer que, no fim das contas, aquilo que fazemos é muito mais
importante do que aquilo em que acreditamos. Bênçãos aos que creem no Paraíso
e, por suas ações, nos aproximam desse ideal aqui na Terra. Maldições para
ninguém, porque não acredito nessas coisas. “Eu acredito na pureza da resposta
das crianças.” Acredito na utopia que não irei alcançar, na verdade que não
conhecemos. Ah, e quem se importa com as coisas em que eu acredito?
Os leitores do blog costumam dizer que sou de “esquerda”.
Dependendo de quem coloca o rótulo, o uso da palavra pode significar tanto
simpatia pelas minhas ideias como a mais profunda e abissal aversão.
Já escrevi uma pequena série sobre a ânsia da humanidade por
orientações direcionais (textos 1, 2 e 3), na qual pretendi pontuar que os
conceitos que relacionamos com “direita” e “esquerda” estão um tanto
anacrônicos, e que esse tipo de polarização passa longe do que deveríamos
almejar. Posicionar à "esquerda" valores que devem ser universais,
como o combate à desigualdade social e a defesa dos direitos civis, é cometer
com os "bons" liberais as mesmas injustiças de que são vítimas os "esquerdistas"
contemporâneos quando tentam colar entre suas (nossas?) bandeiras uma mixórdia
que vai do socialismo autoritário pré-muro de Berlim ao capitalismo predatório
chinês.
Confesso, porém, que essa contestação aos modelos tradicionais,
que conduzo usualmente, sempre deixa perguntas no ar: se não vamos seguir pela
“direita” nem pela “esquerda”, por onde então? Se pagar dívidas “pode não ser uma prioridade”, é para deixar de pagar ou não? Se a participação política não
pode acabar no ato de votar, o que mais devemos fazer?
Não deixo perguntas sem resposta por acaso - como não será por
acaso, nem por ser burrroo dá um zero pra ele que ofenderei a norma culta
iniciando a próxima frase com um pronome oblíquo átono. O faço, algumas vezes,
por não ter mesmo uma boa resposta. Em todas as vezes, por não querer que
ninguém se guie pelas minhas respostas. “Ah, chegou atrasado,
isso é filosofia clássica, se preocupar mais com perguntas do que com
respostas.” Pode até ser. Mas não entendo nada de filosofia, não li nem o
"Mundo de Sofia", e no geral me considero bem pragmático. Acho que as
perguntas precisam de respostas. Mas elas devem ser conquistadas.
Por rejeitar verdades prontas, não abraço ideologias ou religiões.
Malgrado as pretensas diferenças entre os muitos “ismos” que lutam ao longo dos
séculos pela preferência do público, todos se assemelham dos modos mais
absolutamente nocivos: provocam divisões, quando precisamos de união; e
pretendem impor modelos de pensamento, ignorando que dependemos da liberdade
tanto quanto de oxigênio.
“Nenhum homem é uma ilha”, poetizou John Donne. Mas todas as ilhas
são diferentes, por mais que de longe possam parecer iguais. E para que os
ávidos por respostas não me acusem de estar tergiversando novamente, afirmarei
a única ideologia que tento praticar, e que desejo para todos: o livre
arbítrio. Que cada um pense por si mesmo. Que construa suas dúvidas e certezas,
seu único caminho. Único, não solitário, pois há muitas estradas que conduzem
aos mesmos destinos. Mas que devem ser trilhadas com os próprios pés, não
seguindo as pegadas dos outros.
Evidentemente, podemos e devemos fazer bom uso das placas
dispostas ao longo da trilha. Por isso, de vez em quando, me arrisco a lançar
uma conclusão ou outra, bem como a indicar fontes de pesquisa que explicam umas
poucas coisas, ao mesmo tempo em que nos induzem a descobrir outras. E não
deixo de defender minhas pautas: direitos humanos, liberdades individuais,
Estado laico, redução da desigualdade social, transparência na gestão pública,
emergência de novos modelos de participação política. Mas que continuem sendo
minhas, e não de um “ismo” qualquer. Porque as quero livres, contagiantes,
viralizantes, e não empacotadas. Que se afirmem por suas virtudes,
e não por oposição a inimigos imaginários.
Pensei em encerrar dizendo que felizes são os que não precisam de
gurus ou profetas. Pena que seria um fechamento enganoso, pois
liberdade de escolha não é sinônimo de felicidade. Ser livre é apenas negar-se a viver como uma sombra ou marionete, rejeitar a mediocridade do caminho já
trilhado. Por fim, há apenas uma coisa que posso dizer àqueles que procuram por
uma estrela para seguir, ou por mandamentos para obedecer: libertem-se. A vida que vale a pena ser vivida não vem com manual de instruções.
As eleições passaram, mas
a guerra continua. E a batalha que ocupou os noticiários na última semana é a
proposta de “ajuste” da meta fiscal.
Resumindo o imbróglio: o
Poder Executivo estabelece, a cada ano, metas de arrecadação e despesas para o
exercício financeiro seguinte, por meio da Lei de Diretrizes Orçamentárias
(LDO). O governo não pretende, em 2014, cumprir as metas que havia proposto na
LDO. Assim, enviou ao Congresso (em novembro) um projeto de lei para modificar o
sistema de cálculo da meta, incluindo como passíveis de abatimento no cálculo
do superávit primário investimentos e desonerações que não estavam previstos na
lei original.
Além da inusitada pretensão
de estipular a meta depois de saber o que já foi cumprido, a tramitação do
projeto nos reservou outras surpresas, incluindo a apresentação de um Decreto
que aumenta a dotação parlamentar para emendas, desde que aprovada a mudança na
LDO, e uma grande confusão entre grupos que protestavam no Plenário e os
seguranças do Congresso.
Temos, assim, quatro temas
em um: a expulsão dos manifestantes, a (in) conveniência do envio desse projeto
no penúltimo mês do ano, o critério de “negociação” adotado pelo Governo, e,
por fim, o mais espinhoso: que é “superávit primário”, e devemos mesmo nos
preocupar com ele?
Sobre a expulsão: considero
aceitável restringir o acesso de pessoas que realmente estejam atrapalhando,
ofendendo, tentando obstruir no grito. Agora, isso seria em caráter de exceção.
A regra é que o povo tem o direito de ocupar o Congresso. Mesmo se o “povo” no
caso for a claque de um partido, de um sindicato, de uma ONG, ou um bando de
viúvas da ditadura. Ser militante de uma causa, ainda que estúpida, não é
hipótese de exclusão de direitos políticos. Botar todo mundo pra fora com
truculência e depois votar com portas fechadas são atitudes que não combinam
com nossas pretensões de sermos mais democráticos.
A segunda questão é quanto
à conveniência de se alterar a LDO depois que ela foi aprovada. Não é a primeira vez que isso acontece, já foi feito por Lula, pela própria Dilma, até
por FHC.
A história mostra que
projeções econômicas se revelam equivocadas com frequência, às vezes por
fatores imprevisíveis. Outras, porque o que chamaram de projeção era chute
mesmo. Em todo caso, não concordo que as metas fixadas na LDO devam ser
imutáveis. O ideal é que sejam mantidas, mas devem ser admitidos ajustes, se
devidamente motivados. Difícil de aceitar é que a mudança ocorra no penúltimo
mês do ano, com o exercício praticamente encerrado, para fazer conta de chegada.
Denota, no mínimo, uma tremenda falha de planejamento.
A questão mais divertida é
a terceira: dezessete dias depois de propor a alteração da LDO, o Poder
Executivo enviou um Decreto liberandoR$ 444.000.000,00 extras para emendas parlamentares,
desde que aprovada a nova LDO. Quando vi isso, lembrei do seguinte trecho do
livro “Brasil em Alta”, do jornalista norte-americano Larry Rohter:
“Uma coisa é um presidente
(...) apoiar um projeto de um deputado de outro partido, em troca do seu voto
(...): esse tipo de fisiologismo acontece
em todas as democracias. Porém, no Brasil (...), também adotam práticas
tais como (...) a compra descarada de
votos.”
Assim parece até que
evoluímos! Como estamos conseguindo combater um pouquinho a corrupção, as negociações
do Executivo com o Legislativo precisam se tornar mais refinadas. Em vez da “compra
descarada” de votos, troca de favores: vota esse que é bom pra mim que eu mando
um bom pra você. Prática que, segundo Rohter, é comum em todas as “democracias”.
Por que seríamos diferentes, se podemos ser iguais? Essa “venda casada” no
apagar das luzes de 2014, portanto, tende a ser apenas uma pequena amostra do
que pode acontecer daqui pra frente, na relação de um Executivo que parece
forçado (e conformado) a ser “conciliador” com um Legislativo fragmentado e
fisiológico.
Finalmente, a questão de
fundo. O que é “superávit primário”? É o resultado do confronto das receitas
não financeiras do governo (basicamente, impostos) e suas despesas não
financeiras. Fazendo uma analogia com a vida cotidiana de um trabalhador, seria
a sobra do salário depois de adimplidas as despesas básicas: saúde,
alimentação, educação, moradia.
Numa análise superficial,
parece lógico que é melhor sobrar do que faltar, e que o “superávit” seria
desejável. A questão, porém, é muito mais complexa do que isso.
O objetivo de
perseguir o “superávit primário” é o pagamento da dívida pública. Há mais de
uma década, os planos orçamentários do governo devem ajustar as despesas à
expectativa de arrecadação, de modo que sejam geradas diferenças positivas, os superávits,
para honrar os encargos da dívida.
Para refletirmos sobre isso,
vamos imaginar que somos chefes de uma grande família. E que herdamos dívidas. Por
isso, precisamos controlar nossos gastos, economizar o máximo possível para
amortizar essas dívidas. Porém, a renda que auferimos é limitada, os juros,
altos, e as necessidades da família, muitas e crescentes. Vamos levando a vida assim
até que um dia precisamos fazer uma escolha: alimentar os filhos ou pagar os
juros do cartão de crédito.
Acredito que a maior parte
dos pais não teria dúvida sobre o que escolher. E a escolha dos nossos
sucessivos governos tem sido sempre, em primeiro lugar, pagar os juros do
cartão de crédito.
“Ora, colocando assim,
induz o leitor a pensar que é uma decisão errada. Mas quem deve tem que pagar.
Por que ficou devendo, em primeiro lugar? Se não pagar agora, pode ficar pior
depois. Tem que fazer sacrifícios, honrar os compromissos. Plantar para depois
colher! Aliás, onde foi gasto o resto do dinheiro?”
Colocações pertinentes,
difíceis de serem repercutidas na grandes mídia. Dá mais ibope mostrar um
brucutu escorraçando uma velhinha raivosa. Desconfio, também, que quem comanda
o espetáculo não tenha muito interesse em atiçar o povo (agora estamos falando do
povo mesmo) com essas perguntas. Porque quem começar a procurar asrespostasvai descobrir que tem muita gente se
sacrificando há tempo demais, plantando para outros colherem. Que boa parte desses “compromissos” envolve interesses só confessados sob a benção das
delações premiadas. Que existem dívidas maiores a serem pagas, algumas
acumulando juros desde a chegada de Cabral. Mas essas continuarão esperando
pelos trocados que sobrarem depois da fatia dos banqueiros; afinal, a lei manda
que eles sejam sempre os primeiros da fila.
“Essa aspiração se me
afigura imoral e anárquica. No dia em que a convertêssemos em lei pelo voto do
Congresso, teríamos decretado a dissolução da família brasileira.”
Parece o viúvo da ditadura
ou um pastor qualquer pregando contra o casamento civil igualitário, não é?
Nada disso, as palavras acima foram ditas por um parlamentar capixaba revoltado
com a proposta do direito de voto para as mulheres durante uma sessão da primeira
Assembleia Constituinte da República, em 1890.
O que esse trecho de
discurso demonstra, além de escancarar o anacronismo de tantos que insistem em
negar o presente para evitar o futuro, é que as coisas mudam. Por mais que
possa ser difícil percebermos o fluxo da mudança, encarcerados que estamos num
minúsculo pedaço do mundo, num átimo desprezível da história, ele está passando
por nós, nesse exato momento. E podemos enxergá-lo, desde que saibamos para
onde olhar.
Eu vejo a mudança em
coisas que hoje consideramos pequenas, e vistas do passado seriam grandes
conquistas, como votarmos em eleições diretas para Presidente da República
pela sétima vez consecutiva. E a vejo também em coisas que sempre foram e
sempre serão pequenas, nos espasmos agonizantes de minorias retrógradas que pedem menos direitos, menos povo, mais passado.
Há até quem escancare o desejo de voltar às trevas e segure
cartazes por “intervenção militar”. Já eram pequenos no passado, mesmo com o
poder das armas; agora, são minúsculos e caricatos. Mas é bom que saiam do
armário, porque para mudar de verdade precisaremos arrancar muitas máscaras.
E, se há alguma coisa
realmente grande acontecendo, é que as máscaras estão caindo. Por mais que
velhos atores ainda tentem se apegar a seus tão reprisados papéis, encenando um
jogo em que não há corruptores, mas apenas corruptos, e estes estão sempre do
“outro” lado, existe luz demais para que eles possam passar despercebidos por
trás das cortinas.
Historiadores
provavelmente elegerão um momento emblemático que marcará nosso rito de
passagem para um novo país, com mais direitos, com verdadeira democracia. Em
que vivenciaremos um nível de ética e de afirmação dos direitos individuais que,
hoje, julgamos impossível. Mas, assim como o “Dia D” e o assassinato de
Francisco Ferdinando, o marco escolhido terá mais valor romântico do que
histórico.
Porque, no fim das contas,
não terão sido as “diretas já”, nem a Lei da Ficha Limpa, nem os mensalões e petrolões.
Não terão sido os negros e mulheres no STF, nem um retirante sem curso superior
(ou uma mulher) na Presidência da República. Não terá sido junho de 2013, nem
outubro de 2014. Não terá sido por causa do “homem do ano” que caiu do cavalo e
agora está sendo julgado por crimes contra o mercado financeiro, enquanto
dezenas de executivos saem algemados de empreiteiras. Não terá sido por causa
de um Juiz do interior de São Paulo que, em 2011, autorizou o primeiro
casamento gay do Brasil, nem por causa dos Ministros do STF que enjaularam os dirigentes do principal partido político do país.
Não terá sido por culpa, ou por causa, desse partido, nem de nenhum outro. Mas
será, ainda que ninguém esteja percebendo ainda, nem possa entender os motivos.
Como poderíamos, se estamos olhando de dentro do redemoinho?
Não que eu creia numa
“onda moralizante” após mais um grande escândalo, ou em muitas cabeças
cortadas. Até duvido disso. Haverá, como sempre, muita impunidade, a começar
pelos delatores, que já estão quase sendo tratados como benfeitores. Haverá
corruptores se fazendo de “vítimas”, e gente acreditando neles. Interesses
poderosos atuarão abafando explosões daqui, e reconstruindo pontes dali. Mas,
desde que os primeiros tijolos viram o fundo do rio, já ficou claro que o novo
caminho não poderá ser igual ao anterior.
Terá que ser melhor, eu
digo. Pode ser pior, dirão os cínicos e pessimistas. Mas não será. Porque não
somos os mesmos que éramos há cinquenta anos. Somos e seremos melhores. Temos
muita coisa para destruir, e mais ainda a construir.
Claro que há incerteza e
ameaças no caminho. Dias de tormenta, antes de noites com sol. Mas gosto de ver
o país dando sinais de que caminha para um amanhã diferente. Adoro a verdade,
ainda que tardia e pela metade; afinal, mesmo a metade é mais do que tínhamos. Aprecio
as pequenas vitórias, porque elas nos dão força para continuar. Nos fazem
acreditar que, finalmente, as vozes que até outro dia sussurravam
envergonhadas, como se ser honesto fosse o único pecado abaixo do Equador, ecoarão
como trovões. Que venha a tempestade.
“Dirão:
"É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veio
de Portugal". Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal. Eu repito,
ouviram? Imortal! Sei que não dá para mudar o começo mas, se a gente quiser,
vai dar para mudar o final!” (Trecho final do
poema “Só de Sacanagem”, autora: Elisa Lucinda)
Claro que ninguém poderia prever, naquele fatídico 26 de outubro
de 2014, que o resultado daquela eleição representaria, literalmente, o fim do
Brasil. Nem mesmo na semana seguinte, quando as manifestações xenofóbicas e
petições por separatismo e impeachment tomaram as redes
sociais e, em menor escala, as ruas (uma passeata com 30 pessoas teria tomado a Avenida Paulista já no
dia seguinte ao pleito), essa hipótese parecia sequer factível. Mimimi era
o comentário mais comum de resposta ao grito dos revoltosos.
Todos apostavam que, passado o frenesi pós-eleitoral, a situação
se acalmaria. Porém, uma série de atitudes impensadas da Presidenta reeleita,
logo no início do seu segundo mandato, desencadeou uma série de revoltas
populares, que desembocaram na então inimaginável guerra de secessão.
Até hoje não se sabe exatamente qual foi a fagulha que iniciou o
incêndio. Alguns culpam um pacote de plebiscitos e decretos enviados pela
Presidenta ao Congresso, que teriam como objetivo transformar o país
numa Ditadura por meio da ampliação maciça da participação popular nas decisões
de governo (?). Outros, a uma emenda no orçamento que destinava um extra de 0,003% das receitas de um tal “fundo de participação dos
municípios” para o Nordeste. A tese mais aceita, porém, é de que a revolta
só se instaurou mesmo quando foram anunciadas desonerações tributárias para
equipamentos eletrônicos destinados ao consumidor de baixa renda, num programa
batizado “Meu Tablet, Minha Vida”.
A população rica, instruída e trabalhadora do Sul-Sudeste, que
precisava viajar para fora do país a fim de adquirir produtos sem pagar os
escorchantes impostos brasileiros, que tolhiam sua renda e deterioravam cada vez mais sua condição de vida, não aceitou essa infâmia. No dia seguinte ao
anúncio da desoneração, o Sul anunciou, no Facebook, sua separação. Um abaixo assinado virtual,
lançado na mesma data, deu legitimidade e tornou irreversível o processo.
Nascia a Nova Argentina, formada pela união dos antigos estados do
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Para evitar futuros conflitos
eleitorais, que pudessem levar a mais cisões, decidiu-se instalar a Monarquia.
Ainda, considerando a renomada inapetência genética dos nascidos em solo
brasileiro para gerirem os negócios do Estado, o Monarca teria que ser
importado. Abriu-se uma enquete, cujo vencedor foi o Príncipe da Baviera.
Seduzido por fotos daOktoberfeste da Festa da Uva, o Príncipe
interrompeu suas férias vitalícias numa estação de esqui alpina e aceitou
assumir o trono da Nova Argentina.
O povo bandeirante logo seguiu o exemplo sulista. Porém, embora
concordassem com a Monarquia, não viam necessidade de importar um nobre. A
história do pujante Estado de São Paulo atestava a competência do puro-sangue
paulista, principalmente quando ele era misturado com japoneses, chineses,
coreanos, italianos, libaneses, fluminenses, e, quem diria, até com nordestinos.
Curiosamente, os movimentos revolucionários mais fortes se
concentraram no apoio não a paulistanos históricos, mas a dois radicados: o
artista, comediante e parlamentar Tiririca, e o cantor, escritor e filósofo
Lobão. Tiririca, oriundo do Ceará, ex-palhaço de circo, tinha pouco estudo mas muita popularidade: acabara de conquistar, pela segunda vez,
a maior votação do estado para a câmara federal. O carioca Lobão, após uma juventude
turbulenta, com seguidas detenções por porte de substâncias psicoativas, se
convertera em um ícone do movimento liberal. Sua heróica resistência às
tentativas de instauração da ditadura bolivariana no Brasil inspirava a elite
social e intelectual do país.
Porém, apesar da fama de Lobão, os seguidores de Tiririca eram
mais numerosos. Numa rápida investida, tomaram o Palácio dos Bandeirantes e
expulsaram de lá o governador. Só então perceberam que haviam se esquecido de
um detalhe: onde estava o líder da revolução? Enquanto a cúpula debatia
como manter o controle enquanto seu Messias não era encontrado, foram surpreendidos pela augusta figura do “Deputado
Francisco Everardo” ao vivo na tevê. Informado pelo repórter de que estaria
sendo aguardado em São Paulo para a coroação, Tiririca disse:
“Ô abestado, mas quem qui disse qui ieu quero ficá lá cum aqueles doido? Si vão
dividí mermo o Brasir, perfiro vortá pro meu Ceará!”
A desmobilização foi instantânea. O trono, assim, caiu no colo de
Lobão, que adotou a alcunha de Woerdenbag I, Imperador Bandeirante.
Esperava-se uma forte reação do governo central ao movimento
separatista. O que não aconteceu. Numa decisão surpreendente, a Presidenta
Dilma abdicou do cargo e partiu para exílio voluntário na Bulgária. Na carta de
renúncia, ela se declarou “chocada com as notícias vindas do Sul e de São
Paulo, e, principalmente, com as fortes discussões nas redes sociais que desfazem
amizades e semeiam a discórdia entre famílias. Retiro-me, assim, pelo bem
maior.” Relatos não oficiais, contudo, sustentam que ela na verdade estaria “de
saco cheio de tanta frescuragem”.
Na Bulgária, Dilma também foi eleita mandatária da nação, e
finalmente concretizou seu sonho de outorgar uma Constituição Bolivariana. Mas,
isso não tem grande importância para nossa história.
Com a renúncia da Presidenta, e a consolidação da Nova Argentina e
do Império Bandeirante, nada impedia a fragmentação do restante do território
brasileiro. As regiões Norte e Nordeste se uniram ao Rio de Janeiro e Espírito
Santo para formar Cuba do Sul, sob a liderança do mitológico Presidente Lula.
No planalto central, como de hábito, ninguém sabia para onde ir ou
o que fazer. Aproveitando-se do abandono da capital, os discípulos de Inri
Cristo se uniram aos integrantes de uma comunidade hippie da Chapada dos
Veadeiros e dividiram o território. Inri Cristo tomou o Palácio do Planalto, e
os hippies, o Congresso Nacional. Como eles chegaram numa sexta-feira, não
houve qualquer resistência. E assim, por obra do acaso, surgia um regime
inédito no cenário mundial, a Teocracia Parlamentarista Libertária da Grã-Ordem
Kavernista.
Havia, então, um único vazio de poder: Minas Gerais. Os mineiros
tentaram se incorporar ao Império Bandeirante, mas o Imperador Woerdenbag os
rejeitou, alegando que “não ia dar mole pra infiltração comunista”. Sem opção,
acabaram se emancipando a contragosto. A República das Alterosas elegeu como
líder provisório o candidato derrotado por Dilma na disputa presidencial, Aécio
Neves. O reinado de Aécio, porém, foi brevíssimo. Após uma semana, por motivos
até hoje não esclarecidos, ele fugiu em direção ao Rio de Janeiro, e requisitou
asilo político em Cuba do Sul.
Aécio esperava ser perdoado por suas antigas desavenças com Lula,
obter a cidadania cubano-sulista e abandonar a vida pública. Tudo que desejava
era voltar ao seu modesto apartamento no Leblon. Porém, a imberbe nação de Cuba
do Sul não podia se arriscar a um incidente diplomático desse porte, e negou o
pedido. Aécio deveria voltar a Minas.
Desse ponto em diante, ele desaparece dos registros históricos.
Com exceção de um boato de que teria sido visto a caminho de Brasília
acompanhado do também ex-candidato à presidência Eduardo Jorge para se juntarem
à Grã-Ordem Kavernista, nada mais se ouviu dele. É como se Aécio tivesse virado
pó.
Gostaria de terminar este relato dizendo que a separação, ao fim,
foi pelo bem geral da nação. Mas do ponto em que escrevo, vinte anos depois dos
traumáticos acontecimentos narrados, essa seria uma visão falaciosa. Com exceção de Cuba do Sul, que prospera sob a liderança do
Presidente Eterno Lula (que, aos 90 anos, caminha para um surpreendente sexto
mandato), os demais Estados soberanos continuam aquém de suas potencialidades. A República
das Alterosas, após superar a turbulência provocada pela fuga de Aécio, se
firmou como um país pacífico e produtivo. Mas a falta de uma saída para o mar
estrangula os produtores locais, que são obrigados a pagar taxas abusivas para
usarem os portos de Cuba do Sul.
Por falar em sul, a Nova Argentina se tornou
berço de gente mansa, indolente e sem ambição. Alguns creditam essa mudança à
influência nociva do Príncipe da Baviera, que se revelou nada mais que um bon vivant. Outros afirmam que o Sul já
cumpriu seu projeto histórico se separando dos selvagens, e agora nada mais há
a se fazer.
Espírito semelhante habita o território Grã-Kavernista, que
regrediu a um modelo econômico pré-colonial. Isso gerou grande satisfação do
povo indígena, que hoje ocupa boa parte do cerrado.
Sim, ainda não falei do Império Bandeirante. Infelizmente, nada
sei sobre eles. O Imperador Woerdenbag há muito fechou as fronteiras e proibiu
qualquer contato com o mundo exterior, para "proteger os súditos do perigo da disseminação de ideário subversivo”. Do fundo do coração, espero que estejam bem.
Tem uma palavra martelando na minha cabeça há alguns
dias: “pertencimento”. Palavrinha feia, até, mas que explica muito sobre o modo
como levamos nossas vidas. Gostamos de estar com outras pessoas, de sentir que
somos parte de algo maior. Por isso nos reunimos em comunidades, clubes,
associações. Escolhemos times de futebol e partidos políticos.
Podemos encontrar explicações sobre esse
comportamento nos mais variados ramos da ciência. Mas, entre a biologia e a
metafísica, fico com Tom Jobim: é impossível ser feliz sozinho.
Essa noção de “pertencimento” me alcançou, não por
coincidência, depois que escrevi sobre meu voto no segundo turno, e comecei a
reparar em outros textos com o mesmo tema. Destaco o de Gregório Duvivier.
Recomendo a leitura, mas já adianto a conclusão do autor: “Se quem defende
causas humanitárias e direitos civis é chamado de petista, não me resta outra
opção senão aceitar essa pecha.”
Pressionado
a escolher um lado, Duvivier fez uma opção. Assim como eu havia feito, antes
dele. Mas dicotomias quase sempre são falaciosas, e podem nos induzir a
conclusões apressadas e falhas. Por isso, resolvi considerar uma segunda
opinião, e analisar um pouco o grupo ao qual tinha decidido me opor.
Após isolar os casos crônicos e potencialmente contagiosos de petefobia, identifiquei duas motivações razoáveis para o voto no
candidato de oposição. Alguns acreditam, genuinamente, que com o PSDB no
governo teremos mais crescimento econômico e, por conseguinte, um país melhor para todos. Outros não acreditam tanto nisso,
mas acham importante a “alternância de poder”.
Discordo das duas premissas. Considero a primeira equivocada, e a segunda, ingênua. Mas admito a possibilidade
de estar enganado. Sempre há uma chance, de sei lá, 0,01%. Em todo caso,
estaríamos no campo das diferenças de opinião e de ideologia. Posso conviver
com isso.
Não posso, porém, conviver com o discurso do ódio,
tão difundido por aqueles que, imagino, não irão votar na “vaca”, na “fdp”, na
“terrorista”.
Não posso concordar com pessoas que ignoram o
profundo abismo social que ainda existe no Brasil e vociferam contra o “bolsa
esmola”.
Não posso aplaudir o preconceito de classe, insuflado e escancarado de forma bizarra pelo ex-presidente, na sua indulgência com os brasileiros
que vivem nos “grotões” e que não conhecem a Verdade, não por serem pobres, mas
“mal informados”. Assina a Veja pra eles, sociólogo!
Não posso me alinhar a quem trocaria todos os
programas sociais do governo, que tiraram milhões de pessoas da fome e da
miséria, por um descontinho no seu próprio imposto de renda e uma queda no
preço do dólar, que lhes permita encher mais as bolsas na próxima viagem para
Miami.
Não posso aceitar a homofobia, a intolerância e a
incompreensão.
Não posso unir forças com quem sente “saudades” da ditadura militar. Com aqueles que querem enjaular, prender a postes ou assassinar crianças e adolescentes pobres, cujo maior pecado foi terem nascido do lado
errado do Equador, no meio de um povo que acha mais cômodo sacrificá-los do que
cuidar deles.
“Ah, mas eu vou votar no Aécio e não concordo com
nada disso!”
Pela primeira parte, meus pêsames. Pela segunda, não
faz mais do que a obrigação.
Acredito, mesmo, que a maioria dos eleitores
do PSDB viva no século XXI e não comungue com essas ideias. Mas, após muito
pensar, descobri que não conheço ninguém que concorde sequer com uma dessas sandices e vá votar em Dilma Rousseff. E que conheço muitas pessoas que vomitam
periodicamente uma ou mais dessas besteiras, e todas votarão em Aécio Neves.
Não partilho da empáfia de FHC para afirmar que
pensam assim porque seriam ignorantes, ou “mal informados”. Não me importo, na
verdade, com os motivos. Apenas me reservo o direito de pensar diferente.
E de afirmar essa diferença com firmeza, com absoluta convicção.
Sob essa perspectiva, fica fácil decidir. Olho para frente e vislumbro duas estradas. Acredito que uma delas conduz a um amanhã
melhor do que hoje. A outra, direto para um passado ao qual não desejo
retornar. Acredito, mas não tenho certeza. Talvez seja ao contrário, ou as duas
levem ao mesmo lugar. Ninguém sabe, ninguém pode saber. Não até que aconteça. O
destino é incerto. Mas, se há uma coisa que sei acima de todas as outras, é ao
lado de quem desejo caminhar.
Marina disse que
anunciaria na quinta-feira sua posição no segundo turno, mas já mudou de ideia
sobre isso. Lá nos fundos, o Pastor Everaldo continua defendendo o casamento
entre homem e mulher. Em primeiro plano, a turma do bico amarelo segue se
digladiando com os militantes da estrela vermelha. Porém, mesmo com tudo
parecendo igualzinho, o futuro não é mais tão bacana como na semana passada. O
elenco da novelinha mais legal de 2014 se reduziu a apenas dois personagens, e
agora não tem jeito, vamos ter que assistir a um filme repetido.
Se há um ponto
positivo, é que com apenas duas opções fica menos difícil escolher. E não vou
ficar em cima do muro. Depois de pouco pensar, enumerei os motivos principais
da minha escolha, que agora compartilharei com vocês. É uma lista singela, mas
cada uma dessas coisas tornou a minha vida mais plena, divertida e luminosa nos
últimos doze anos. Os motivos podem ser um tanto egoístas, reconheço; mas para
quem não gostar deles, eu tenho outros. Sem mais delongas, portanto, apresento
as dez coisas que aprendi a amar, ao ponto de não saber como viveria sem elas:
1.
Previsões regulares de hecatombes bíblicas, marcadas sempre para o “ano
que vem”, ou, na melhor das hipóteses, para o próximo mandato presidencial. Se
eles não transformaram isso aqui na Coréia do Norte até hoje, dos próximos
quatro anos não passa!
2. O
sentimento renovado de alívio, ano após ano, quando a tão esperada catástrofe
não chega. O apocalipse zumbi, por enquanto, continua só em "The Walking
Dead".
3.
Olavetes e constantinetes se borrando de medo da “ameaça comunista”, da
“revolução bolivariana”, e de praticamente qualquer coisa pintada de vermelho.
Mesmo que seja uma ciclovia.
4. O
compartilhamento em loop infinito do vídeo em que o Barbudão declara que sempre
foi preguiçoso e nunca gostou de estudar. Quem pode ficar um dia sem ver de
novo esse brilhante e inspirado discurso?
5.
Lobão, Roger e Danilo Gentili promovidos a intelectuais, ícones do pensamento
liberal. Imagina se voltássemos aos anos 80 no DeLorean de Marty McFly para
anunciar que Lobão se tornará um filósofo, ainda por cima, de extrema-direita.
Imponderável, inacreditável, fantástico.
6. A
eternização dos efeitos benéficos das reformas mágicas do catedrático FHC, que
continuam mantendo o país de pé até hoje.
7. As
sentenças quilométricas e rocambolescas da Presidenta. Tudo bem que a Marina se
expressa de forma ainda mais incompreensível, mas com muito menos classe. E,
ademais, ela já foi jogada pra escanteio mesmo.
8. Como
decorrência direta do item anterior, o advento da bem afortunada Patrulha em
Defesa da Língua Portuguesa, sempre pronta a pegar no pé da estimada líder a
cada erro de concordância. No tempo da minha avó, isso se chamava falta de
serviço. Mas, com o excesso de benefícios assistenciais sustentando a população
ociosa, hoje sobra tempo até pra isso.
9. O
aumento do nível de exigência da sociedade, evidenciado na crescente revolta de
pessoas que andam de carro zero, viajam pro exterior duas vezes ao ano, mas
vivem reclamando que o país está no buraco.
10. A
manutenção dos baixos índices de desemprego. O que fariam, em um novo governo,
esse monte de colunistas que ganham a vida só falando mal do PT? Veríamos um
fechamento generalizado de revistas, sites, jornais, pela falta absoluta do que
publicar. Acho que nem na época da ditadura tivemos uma ameaça tão iminente aos
nossos veículos de mídia.
Enfim,
malgrado meus vieses pessoais, não creio que a nossa sociedade esteja preparada
para abandonar a petefobia. Ou, de repente, sou apenas eu não querendo ficar
sem toda essa diversão. Mas, seja pela minha própria felicidade ou pelo bem
geral da nação, já resolvi que no dia 26 vou sair de vermelho.
No próximo domingo, 05 de outubro, não vamos ao
Maracanã. Mas um
navegante desavisado, ao conferir as manifestações nas ruas e redes
sociais, bem poderia achar que essas siglas com “P” são de times de futebol,
tal o fanatismo que alguns empenham na defesa dos seus candidatos – ou, até com
mais frequência, no ataque aos outros.
Embora não tenha a mínima intenção de entrar nessa, até por nenhum candidato me empolgar ao ponto de
provocar esse nível de engajamento, acho até positivo que as pessoas manifestem
suas preferências. Há, porém, uma série de coisas que me incomoda no modo como
isso acontece em período eleitoral.
O primeiro é o já citado “futebolismo”. Não é
política, estúpido, são eleições. A quase totalidade das pessoas que se
manifesta nessa época não está disposta a debater sobre nada. Querem apenas falar
bem dos seus candidatos e mal dos outros. Agem, assim, do mesmo modo que os
políticos cujas práticas atacam: vale tudo, desde que seja pro meu preferido
vencer. Porque ele é muito melhor que os outros e, com ele, agora vai.
Não descarto a possibilidade de que essas pessoas,
que às vezes parecem estar babando de fúria ao discutir “política”, estejam com
as melhores intenções. Que realmente acreditem no virtuosismo dos seus
eleitos, e depositem neles a esperança de uma retumbante redenção para o
nosso tão castigado país. No fundo, gostaria de acreditar nisso também. A vida
seria bem mais fácil, eu sairia compartilhando dezenas de memes no facebook e
no domingo iria todo feliz para a maquininha, apertar “xx”. Mas o realismo
ingênuo, infelizmente, ainda não conseguiu me capturar ao ponto de eu ter
absoluta certeza sobre nada. Assim, sou incapaz de replicar certos comportamentos e sair afirmando que quem vota no candidato “b” é idiota, quem vota no “c”
só pode ser alienado ou corrupto, e coisas desse tipo. Para aqueles que vivem bem com essas certezas, vou sugerir o oposto do que certa
candidata sugeriu a um comediante que se acha intelectual: não estudem. A
ignorância é uma benção. Mas, se não tem a mínima ideia do que é esse tal
“realismo ingênuo”, e quiserem entender um pouquinho, sugiro que iniciem por esse
texto, Dysrationalia e os vieses da razão.
Passo
ao largo, portanto, tanto do fanatismo como da ilusão. Não deixo de ter, claro,
predileção por alguns candidatos, maior aversão por outros. Mas não enxergo,
principalmente nos postulantes à Presidência com chances reais de serem
eleitos, diferenças tão grandes que me façam acreditar, nem por um momento, nas
profecias do apocalipse da oposição, nem no futuro brilhante prometido pelos
governistas. O que acredito é que o futuro do país depende muito mais do que
faremos, como sociedade, do que dos números que apertaremos na maquininha. E
dessa crença decorre o principal motivo do meu incômodo com a transformação da
política em Fla x Flu.
Não se
preocupem militantes, não é um incômodo nível Levy Fidélix, não acho que vocês
tenham que se tratar numa ilha. Ao contrário, gostaria é que
continuassem dando as caras, demonstrando essa disposição também fora do
período eleitoral. E, talvez, com os ânimos menos inflamados, direcionassem a
energia não só para defender um ou outro partido, mas para atuar politicamente
de verdade. Discutindo ideias, e não batendo boca. Participando de associações
de classe, de ONGs, até de partidos políticos, se tiverem estômago.
Fiscalizando a atuação dos políticos que elegemos. Acompanhando as contas
públicas. Combatendo a corrupção e os maus hábitos no cotidiano, em vez de
apenas compartilhar denúncias de “escândalos”. Abraçando bandeiras universais,
como os direitos humanos, o combate à intolerância e ao preconceito. Enfim,
fazendo qualquer coisa que tenha a mínima probabilidade de ser construtiva. Até
escrever num blog vale. :)
Sinceramente, desejo que isso aconteça muito mais do
que “torço” pela vitória de qualquer candidato. Mas, como caí na besteira de
escolher a pílula vermelha, sei que não é assim que vai ser. Até domingo, e
depois, havendo segundo turno, as pessoas continuarão enxergando anjos e
demônios. Pouco depois, irão tomar conta das próprias vidas, até as próximas
eleições, quando elegerão novos salvadores da pátria.
Pois, para mim, esse domingo não será muito diferente
de qualquer outro. Sim, o que for decidido no domingo valerá pelos próximos
quatro anos. Mas não importam os nomes que saiam daquelas urnas, não é neles
que está o poder de transformar o país e melhorar as nossas vidas. Só nós
podemos fazer isso. Mas dá muito trabalho, então, é melhor ficarmos brigando
uns com os outros a cada quatro anos.
O texto mais lido do blog até hoje foi dedicado à análise do sistema tributário nacional, na qual destaquei a sua nefasta regressividade. Traduzindo: no Brasil os mais
ricos pagam, proporcionalmente, menos impostos do que os mais pobres.
Pesado, injusto, labiríntico,
hiper-normatizado. O sistema tem tantos defeitos que não é de se estranhar que
reforma tributária seja um tema contumaz nas discussões sobre os rumos do Estado.
Reclamamos da carga tributária dia sim, o outro também. E será que os atuais
presidenciáveis estão dispostos a fazer algo nesse sentido?
Veremos, começando pelos representantes dos partidos que governaram nos últimos vinte anos.
Nenhum dos dois propõe redução da carga. O PSDB afirma que “O Brasil é um país
de elevada carga tributária”, em seguida expõe que “aumentar a carga deixou de
ser uma opção viável” (Rolando Lero assinaria essa), e conclui que “é possível avançar na redução
do número de impostos e contribuições.” Ou seja, a carga permanece a mesma, numa estrutura mais enxuta. E como seria a proposta de simplificação?
Não está escrita em lugar
nenhum. Querem montar uma Secretaria Extraordinária para
elaboração do projeto de simplificação!! Mas não é esse candidato que
repete o tempo inteiro que tem muito ministério, muita secretaria, que precisa cortar? E ele propõe inventar mais um cabide de emprego,
sob o pretexto de montar um projeto que deveria estar pronto desde ontem, para ser debatido na eleição?
Mas, calma, ele já tem algumas ideias em gestação.
Corrigir a tabela do IR (jenial, hein?), criar um “cadastro único” e agilizar
o aproveitamento de saldos credores acumulados junto ao fisco. Essa última
acho melhor nem comentar.
Com certeza a candidata oficial fará um ácido contraponto. Afinal, todo mundo sabe que PT x PSDB é o Fla x Flu
da política nacional. Infelizmente, nesse caso particular parece que misturaram
as camisas no vestiário. Tudo que a Presidente propõe é
“simplificação tributária” e “debater a estrutura tributária”. Para ficarem
idênticos e fazerem ainda mais jus ao apelido de irmãos siameses, só faltou Dilma criar uma Secretaria para estimular esse debate.
Por incrível que pareça, após ler essas
“propostas” quase recuperei um pouco de fé na classe política. Sim, pois
esperava encontrar promessas de redução da carga tributária, racionalização
econômica do sistema. O que seria o cúmulo da cara de pau, já que os dois
juntos elevaram a carga em quase oito pontos (em % do PIB, sendo 4,03% nos oito
anos de FHC, e 3,78% nos onze anos de Lula/Dilma), editaram uma infinidade de
normas, e jamais adotaram qualquer medida efetiva para reverter a
regressividade. Não fizeram, e admitem que continuarão sem fazer. Pelo menos
foram coerentes.
Falando de coerência, Marina também
passou por aqui. E com propostas mais ousadas, que fogem da agenda cartesiana
de governo. Ela promete uma reforma com base nas seguintes diretrizes:
não-aumento da carga, simplificação, eliminação da regressividade (oba!), blá
blá, pula essa parte, melhor repartição das receitas.
Supondo que essas propostas ainda estejam
no programa de governo dela (porque já tem uns dois dias que acessei), são bem
mais promissoras do que a confessada intenção de nada fazer de petistas e
tucanos. Alguém fez pelo menos parte da lição de casa. Mas faltou muito para a
nota dez. Marina também evita falar em redução da carga, é “não-aumento”. Onde
foi que ouvi isso antes? Soa melhor do que “manutenção”, mas realmente
detesto jogos de palavras que partem da premissa de que o (e)leitor é idiota.
Certo, isso é um problema só meu, vamos adiante.
O que realmente preocupa no programa
do PSB é que, quando vão detalhar as (poucas) medidas que sugerem, só falam em reduzir, desonerar.
Ora, se o bolo vai ficar do mesmo tamanho, e só dizem o que pretendem
cortar, de onde vai sair o resto do dinheiro? Que parte do plano estão
escondendo? Ou não há plano algum?
Eduardo Jorge não tem nada a ver com
isso, e manda um papo bem mais reto. Não vai aumentar a carga. Se puder, vai
ver se descola umas gambiarras pra reduzir. E tem uma bala de prata no gatilho:
o “imposto único arrecadatório sobre movimentação financeira”, um tipo de CPMF
tratada com esteróides anabolizantes. Caso alguém não se lembre, a CPMF era um
tributo que incidia sobre qualquer movimentação bancária, cuja última alíquota
foi de 0,38%. A proposta do “imposto único” sugere uma alíquota de 2,81%. Se a antiga alíquota já estimulava soluções criativas (empresas carregando
malas de dinheiro, cheques endossados 419 vezes), imagino o que aconteceria
com essa de 2,81%. O cidadão ia preferir fazer exame de próstata a colocar um
centavo no banco. Acho que veríamos um deslumbrante revival da
economia do escambo. Isso, para não citar que toda a arrecadação nacional
estaria sob controle das instituições financeiras. Desculpa Mito, mas nessa não
dá para fechar com você não. Passa a vez.
O espaço está acabando, então vou olhar
só mais uma proposta. Putz, ainda tem mais sete candidatos, deixa sortear um
aqui... hum, Luciana Genro.
A proposta do PSOL tem, basicamente, só
uma diretriz: mudar a estrutura de regressiva para progressiva. Ah, para punir
quem é rico! Como em Cuba e na Coréia do Norte, não é? Olha, não
tenho a mínima ideia sobre como funciona o sistema tributário desses dois aí. Mas
sei que nos Estados Unidos, na Austrália, no Japão, na Alemanha, enfim, em
países fãs do livre mercado e com alto IDH, a carga é progressiva. Então, quem
relaciona tributação justa com “ameaça comunista” devia estudar mais.
Em todo caso, até aí não fizeram grande coisa.
Qualquer um que estude minimamente o assunto diria que é uma diretriz óbvia.
Pois é, mas os únicos que disseram o óbvio foram o PSB e o PSOL. E o PSOL foi
além, pois explicou como pretende realizar isso:
1. Modificação do sistema de alíquotas, para
que os ricos paguem proporcionalmente mais impostos do que a classe média e os
pobres; 2. Eliminar boa parte das desonerações; 3. Tributar mais o capital do que o trabalho; 4. Instituir o IGF, imposto sobre grandes
fortunas, que está há 26 anos na lista de “coisas que estão na Constituição mas
que não era pra fazer de verdade”; 5. Eliminar subsídios em financiamentos para
grandes empresas e grupos econômicos; ou seja, reverter a lógica pela qual opera o BNDES, que privilegia os “amigos do rei”; 6. Acabar com o financiamento público para
empresas estrangeiras; 7. Maior tributação do setor primário,
inclusive com impostos específicos sobre a exportação.
Podemos concordar ou discordar das
propostas. Eu, por exemplo, simpatizo com as cinco
primeiras e vejo com desconfiança as duas últimas. Para os fins a que me
propus neste artigo isso é irrelevante, cada um que faça seu juízo de mérito.
O ponto fundamental é que o PSOL, que certamente não vencerá as eleições, e
sequer tem força no Congresso para negociar uma reles lei complementar, foi o
único partido a apresentar ideias concretas, passíveis de serem debatidas pela
sociedade.
Assim, o que concluí não foi apenas que, se depender desses políticos, continuaremos esperando pela
reforma tributária. Até porque isso eu já sabia. O interessante é que, talvez por estarem escaldados pelos protestos de 2013, os principais candidatos não querem nem tocar no
assunto. Vai que alguém presta atenção e resolve comprar o barulho.
Sim, houve uma exceção, Luciana Genro. Mas,
como sabemos desde o primeiro debate, ninguém pergunta nada pra ela.
Há dezessete dias das eleições, tudo soa
como filme repetido. Um partido acusa o outro de corrupção e incompetência,
alguns acusam todos. Outra se faz de desentendida, embora não chegue a dizer
que não tem nada a ver com isso. A cada debate, uma enxurrada de memes. Analistas
se debruçam sobre os discursos dos três principais candidatos, embora não
tenham nada de novo a dizer sobre eles. E passa ao largo da crônica
especializada a questão que mais me intriga: o mísero percentual de 1% das
intenções de voto atribuído ao presidenciável Everaldo, codinome Pastor.
Eu sei, mal começou o texto e vocês já
acham que eu estou de sacanagem. Garanto que não. E para deixar bem clara a
natureza realíssima do meu assombro com o 1% do pastor, resumirei os motivos
que me levam a crer que ele deveria ter uma votação bem mais expressiva.
Li as propostas do candidato e acompanhei suas performances nos debates. Everaldo apresenta um
cardápio de ideias bem definido. Defesa do conceito “tradicional” de família: não
vale homem com homem nem mulher com mulher. Contra a regulamentação de qualquer
droga, além, claro, das muitas que já estão legalizadas. Descriminalização do
aborto, nem se pode discutir. No campo econômico, a solução é simples:
privatizar tudo. Para melhorar a segurança pública, reduzir a idade penal e
liberar o porte de arma. Tudo em defesa da vida e das famílias. Amém.
Por mais que a minha amostragem possa ser
viciada, estimo em bem mais de 1% a quantidade de pessoas que tem a mesma opinião dele a respeito de todos esses temas.
Antes de começarem a precipitar juízos de
valor sobre meu círculo de conhecidos (no qual a esmagadora maioria dos
leitores, ei você, se inclui), esclareço que essa estimativa inclui pessoas que
não conheço pessoalmente, “anônimos” da Internet, contatos de conhecidos que
comentam e compartilham coisas nas redes sociais. E os convido a refletir, se
percebem, assim como eu, que há muita gente comprando esse barulho, pregando os
mesmos salmos do pastor. E talvez, após essa reflexão, entendam meu espanto: se
tantos pensam (ok, pensar não é o melhor verbo aqui, mas nenhum outro me ocorreu) como Everaldo, por que tão poucos afirmam que votarão nele?
A primeira hipótese que testei foi a de
que os eleitores ainda não conhecessem o candidato. Mas a abandonei ao lembrar
que antes do início da campanha o pastor alcançava índices superiores nas
pesquisas, entre 3% e 5%. Portanto, tornar-se mais conhecido fez com que ele
perdesse votos. Que paradoxo!
Com o horizonte cada vez mais nebuloso,
parti para a segunda hipótese: outros candidatos que defendem as mesmas
bandeiras, com mais eficiência, estão atacando seu nicho de mercado. Ledo
engano. Algumas das propostas até encontram eco nos discursos dos oponentes, em
especial as que envolvem os temas mais caros aos dogmas religiosos. Mas o
pacote completo, com ênfase e convicção? Só mesmo o pastor. Ah, e Eymael, o
democrata cristão, o homem que enfrentou os fariseus e não deixou tirarem o
nome de Deus do preâmbulo da Constituição. Mas não encontramos nenhum voto com
ele, para que pudéssemos acusá-lo de ter roubado do pastor. Assim, o mistério
continua.
Como o mero exercício da reflexão
mostrou-se infrutífero, resolvi ir a campo. A terceira hipótese seria
construída empiricamente. A fortuna me colocou frente a frente não com apenas
um, mas com dois indivíduos que eu supunha que compartilhavam do ideário de
Everaldo. Fiz um rápido teste, submetendo ao seu escrutínio as propostas do
pastor. Casamento gay? Jamais! Privatizar? Genial! Reduzir a idade penal?
Passou da hora!
Esgotei os temas, com o resultado que
previra: 100% de concordância. Qual não foi minha surpresa com a reação dos
dois quando anunciei: considerando suas respostas, trago boas novas. Há um
candidato perfeito para vocês: o pastor Everaldo!
Pois é, não me agradeceram. Sequer
reconheceram o esforço da minha pesquisa. Encararam como piada! Aumentou minha
confusão. Qual a graça? Eu bem que gostaria se houvesse pelo menos um candidato
com que eu concordasse em tudo. E vocês tem. Por que não votariam nele?
“Porque ele não tem chance de vencer”,
responderam. Assim não terá mesmo, nem vocês, que concordaram com todas as propostas, vão votar nele! Argumentei que poucos votos transmitirão a mensagem de que as ideias de Everaldo não tem apoio da sociedade. Seguiram-se algumas respostas evasivas,
desqualificando o pastor sem qualquer base lógica, adjetivando-o de “folclórico”
e outras coisas mais. Continuei sem entender os reais motivos da rejeição ao candidato.
Mesmo
com a experiência frustrada, não desisti de buscar a resposta. Se ela não pode
ser alcançada pela lógica, restam a abstração e a fantasia. Ou, como diriam os
super-leitores (quem não entendeu, tenha um filho, por favor, e volte daqui a
dois ou três anos), a resposta está num livro! Ou num filme, se tiverem
preguiça de ler.
Dorian
Gray (na foto, do filme de 2009, interpretado por Ben Barnes) é um personagem
de Oscar Wilde. No romance, ambientado na Inglaterra da era vitoriana, Dorian,
ao contemplar-se jovem e belo numa pintura, deseja jamais envelhecer. Diz que
daria a própria alma para que, ao invés de agir sobre ele e deixar o retrato
incólume, o tempo agisse sobre o retrato. E assim acontece. O rosto na pintura
vai se tornando velho e feio, refletindo não apenas a passagem do tempo, mas
também os pecados de Dorian. Que seguia jovem, mas experimentava crescente
repulsa pela sua imagem real.
Dorian
escondeu seu lado negro no retrato, e o mantinha trancado num quarto, para que
ninguém pudesse ver como ele realmente era. Os everaldinhos até deixam seus
preconceitos e arcaísmos saírem para passear pelos corredores, vestidos de
Bolsonaros e Felicianos. Mas não parecem dispostos a expô-los na sala principal.
Talvez, assim como Dorian Gray, no fundo eles próprios sejam os que menos
querem encarar sua verdadeira face.