domingo, 14 de fevereiro de 2016

O último dos moicanos


Na era da hiperconectividade, a patologia da incontinência verbal se espalha mais rapidamente que o vírus Zika. As pessoas parecem contaminadas pelo desejo incontrolável de compartilhar suas ideias sobre tudo, mesmo quando só o que tem a dizer é “kkk” ou “Absurdo! Vergonha!”.
Mesmo acometido dia sim, outro também, pela compulsão de escrever, espero estar livre dessa epidemia. Resisto à tentação de emitir opiniões em 99% dos casos. Mas de vez em quando surge um “tema sobre o qual nunca havia pensado em escrever, mas me sinto forçado, após um surto de genuína indignação”. E, antes que 99% dos leitores se evadam, genuinamente indignados com tantas preliminares, melhor esclarecer logo que o assunto é a polêmica Uber x Taxistas, e os argumentos que pretendo discutir foram expostos neste artigo (clique se quiser seguir o link – precisa de cadastro na Folha/ Uol).
O texto chama atenção pelo currículo de quem o assina: deputado federal, ex-secretário municipal de transportes em São Paulo, enfim, o tipo de cidadão cujas ideias podem um dia se transformar em algo que sejamos obrigados a cumprir. E, sob o revelador título “Uber é concorrência ilegal e predatória”, o parlamentar expõe, em síntese, o seguinte:
1. O Uber pode provocar a extinção da categoria profissional de taxista;
2. O Uber utiliza motoristas não credenciados, e busca estabelecer regras diferenciadas para um sistema que já existe e tem normas definidas pelo Poder Público;
3. O Uber não cumpre as diretrizes (tarifas, regras e regulamentação) estabelecidas pelos governos municipais, e criou suas próprias regras, usurpando o papel das prefeituras;
4. Os motoristas do Uber não são submetidos a nenhuma avaliação, os pagamentos são feitos somente por cartão de crédito, e as tarifas são variáveis conforme a demanda;
5. Já existe um sistema regulamentado que funciona a favor do usuário, porque garante a qualidade do sistema e do preço, se houver fiscalização atuante das prefeituras (verdade, ele escreveu isto);
6. A tendência é que o monopólio, hoje estatal, passe para o Uber, com a desvantagem de que o povo elege o prefeito, mas não pode eleger quem comanda o Uber;
7. Há suspeitas de sonegação no pagamento de obrigações tributárias.
Após dividir mentalmente essas sentenças em categorias (possivelmente verdadeiras, mas irrelevantes; argumentos apresentados como contrários, mas que na verdade depõem a favor do aplicativo; e aqueles que parecem ter vindo diretamente de uma realidade paralela), estamos prontos para atacar as primárias teses da acusação.
O Uber pode extinguir os taxistas? Pode, assim como os carros prevaleceram sobre as charretes, o Netflix está fulminando as locadoras de vídeo, e a televisão reduziu os índices de natalidade. O futuro sempre chega. Mas os taxistas não serão vaporizados como os dinossauros, eles continuarão por aí, fazendo outras coisas. Alguns poderão até se cadastrar no Uber, ou inventar modelos de negócio melhores que o substituam.
Motoristas não credenciados? Carteiras de habilitação são concedidas por órgãos estatais. Talvez “credenciamento” signifique pagar uma licença, preencher formulários, alimentar a burocracia. Que, além de faminta, se ofende também com a existência de “regras diferenciadas” para um sistema já normatizado pelo poder público. 
Se essas normas públicas garantissem a satisfação da clientela, os taxistas não teriam com que se preocupar. Mas de que servem regras, controle, fiscalização, se mesmo assim o serviço “alternativo”, “clandestino”, oferecer maior utilidade aos usuários?
Seguimos nos deparando com afirmações estranhas, como o “problema” de só aceitar cartões de crédito, o que tende a aumentar a segurança nas duas pontas; tarifas variáveis conforme a demanda, verdadeiro atentado contra a economia planificada que, pensei eu, havia ruído com o Muro de Berlim; e a afronta de desafiar um modelo que já garante melhor qualidade e preço. Só os usuários que não perceberam e preferem migrar para um novo serviço, apesar de toda a perfeição do que já existia.
Precisamos concordar, todavia, que não iremos “eleger” quem comanda o Uber. Mas podemos provocar a falência desta e de qualquer outra empresa, parando de utilizar seus serviços. Aliás, também não podemos eleger de verdade o prefeito ou qualquer outro governante, porque o voto vale muito menos que a grana.
Quanto a “suspeitas de sonegação”, o mesmo raciocínio se aplica a “n” empresas, muitas bem mais que apenas “suspeitas”. No caso específico do Uber, o detalhe de aceitar pagamentos apenas com cartão de crédito inclusive dificulta a sonegação. Além disso, os motoristas pagam tanto IPVA como ICMS na compra dos veículos, enquanto os taxistas gozam de isenção desses impostos. Tentar conduzir o debate contra o Uber no campo tributário é uma aposta ousada na ignorância de todos que estão do outro lado da mesa.
Não foi, porém, a superficialidade dos argumentos que me indignou, muito menos o viés anti-Uber (aliás, nunca nem usei esse tal de Uber), mas sim o subtexto: a defesa de um modelo de Estado que tem seu fim em si mesmo. Indignação que nasce não por estar diante de uma rematada bobagem, de uma concepção anacrônica, ou de uma falácia cristalina; mas da frustração de não poder dizer que o parlamentar está errado desta vez. Pelo menos, não no mundo real.
Estivéssemos numa sala de aula, ou num clubinho de debates, esse discurso não resistiria aos mais triviais princípios da Teoria Geral do Estado: “o objetivo maior do Estado é a busca do bem comum, os controles sociais devem prezar a eficiência e a justiça”, coisas assim. Mas as decisões de verdade não acontecem na Academia. Do lado de cá dos livros, “o sistema trabalha para resolver os problemas do sistema”.
Não sei quem vencerá a queda de braço Uber x Táxi, se é que haverá vencedor; mas sei que, quando o Estado vigente é um Estado que trabalha para si mesmo, que enxerga o anseio geral por mais liberdade e autonomia como um incômodo, cuja autoridade é um valor mais importante que o bem comum, quem sai perdendo é a sociedade.
Reclamamos, com frequência, dos serviços ruins do Estado, da gestão pública perdulária, dos casos de corrupção. Discutimos, com menos frequência, o quanto os governos deveriam intervir em nossas vidas. Um novo modelo de Estado não será gerado dentro da caixa, por políticos viciados em jogar pelas velhas regras, tampouco resultará de um pensamento travado em falsas dicotomias, como se todas as opções se reduzissem a modelos de laissez faire do século XIX ou ao totalitarismo dos antigos países socialistas.
Novos modelos demandam uma forma diferente de pensar. Precisamos entender o papel ideal do Estado, definir as atribuições que o conduziriam a esse modelo ideal, e assumir nossas próprias obrigações em relação a todo o resto – porque se pretendemos aumentar nosso poder, também aumentará nossa responsabilidade.
Só então poderemos construir um Estado que, abandonando a pretensão de tudo fazer e se concentrando no que é essencial, resgate seu verdadeiro propósito: perseguir o bem comum. Que nos ajude a empreender, trabalhar e viver, e que saiba se afastar quando estivermos, por conta própria, nos virando melhor do que seria possível sob suas rédeas.
  

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