Na
era da hiperconectividade, a patologia da incontinência verbal se espalha mais
rapidamente que o vírus Zika. As pessoas parecem contaminadas pelo desejo
incontrolável de compartilhar suas ideias sobre tudo, mesmo quando só o que tem
a dizer é “kkk” ou “Absurdo! Vergonha!”.
Mesmo
acometido dia sim, outro também, pela compulsão de escrever, espero estar livre
dessa epidemia. Resisto à tentação de emitir opiniões em 99% dos casos. Mas de
vez em quando surge um “tema sobre o qual nunca havia pensado em escrever, mas me
sinto forçado, após um surto de genuína indignação”. E, antes que 99% dos
leitores se evadam, genuinamente indignados com tantas preliminares, melhor
esclarecer logo que o assunto é a polêmica Uber x Taxistas, e os argumentos que pretendo discutir foram expostos neste artigo (clique se quiser seguir o link –
precisa de cadastro na Folha/ Uol).
O texto
chama atenção pelo currículo de quem o assina: deputado federal, ex-secretário municipal
de transportes em São Paulo, enfim, o tipo de cidadão cujas ideias podem um dia
se transformar em algo que sejamos obrigados a cumprir. E, sob o revelador
título “Uber é concorrência ilegal e predatória”, o parlamentar expõe, em
síntese, o seguinte:
1. O
Uber pode provocar a extinção da categoria profissional de taxista;
2. O
Uber utiliza motoristas não credenciados, e busca estabelecer regras
diferenciadas para um sistema que já existe e tem normas definidas pelo Poder
Público;
3. O
Uber não cumpre as diretrizes (tarifas, regras e regulamentação) estabelecidas
pelos governos municipais, e criou suas próprias regras, usurpando o
papel das prefeituras;
4.
Os motoristas do Uber não são submetidos a nenhuma avaliação, os pagamentos são
feitos somente por cartão de crédito, e as tarifas são variáveis
conforme a demanda;
5.
Já existe um sistema regulamentado que funciona a favor do usuário, porque
garante a qualidade do sistema e do preço, se houver fiscalização atuante das
prefeituras (verdade, ele escreveu isto);
6. A
tendência é que o monopólio, hoje estatal, passe para o Uber, com a
desvantagem de que o povo elege o prefeito, mas não pode eleger quem comanda o
Uber;
7.
Há suspeitas de sonegação no pagamento de obrigações tributárias.
Após
dividir mentalmente essas sentenças em categorias (possivelmente verdadeiras,
mas irrelevantes; argumentos apresentados como contrários, mas que na verdade
depõem a favor do aplicativo; e aqueles que parecem ter vindo diretamente de
uma realidade paralela), estamos prontos para atacar as primárias teses
da acusação.
O
Uber pode extinguir os taxistas? Pode, assim como os carros prevaleceram sobre
as charretes, o Netflix está fulminando as locadoras de vídeo, e a televisão reduziu os índices de natalidade. O futuro sempre chega. Mas os taxistas
não serão vaporizados como os dinossauros, eles continuarão por aí, fazendo
outras coisas. Alguns poderão até se cadastrar no Uber, ou inventar modelos de
negócio melhores que o substituam.
Motoristas não credenciados?
Carteiras de habilitação são concedidas por órgãos estatais. Talvez
“credenciamento” signifique pagar uma licença, preencher formulários, alimentar
a burocracia. Que, além de faminta, se ofende também com a existência de “regras
diferenciadas” para um sistema já normatizado pelo poder público.
Se essas normas públicas garantissem a
satisfação da clientela, os taxistas não teriam com que se preocupar. Mas de
que servem regras, controle, fiscalização, se mesmo assim o
serviço “alternativo”, “clandestino”, oferecer maior utilidade aos usuários?
Seguimos
nos deparando com afirmações estranhas, como o “problema” de só aceitar cartões
de crédito, o que tende a aumentar a segurança nas duas pontas; tarifas variáveis conforme a
demanda, verdadeiro atentado contra a economia planificada que, pensei eu,
havia ruído com o Muro de Berlim; e a afronta de desafiar um modelo que já garante
melhor qualidade e preço. Só os usuários que não perceberam e preferem migrar
para um novo serviço, apesar de toda a perfeição do que já existia.
Precisamos
concordar, todavia, que não iremos “eleger” quem comanda o Uber. Mas podemos provocar a falência desta e de qualquer outra empresa, parando de utilizar seus serviços. Aliás, também não podemos eleger de verdade o
prefeito ou qualquer outro governante, porque o voto vale muito menos que a
grana.
Quanto
a “suspeitas de sonegação”, o mesmo raciocínio se aplica a “n” empresas, muitas
bem mais que apenas “suspeitas”. No caso específico do Uber, o detalhe de
aceitar pagamentos apenas com cartão de crédito inclusive dificulta a sonegação. Além
disso, os motoristas pagam tanto IPVA como ICMS na compra dos veículos, enquanto
os taxistas gozam de isenção desses impostos. Tentar conduzir o debate contra o
Uber no campo tributário é uma aposta ousada na ignorância de todos que estão
do outro lado da mesa.
Não
foi, porém, a superficialidade dos argumentos que me indignou, muito menos o
viés anti-Uber (aliás, nunca nem usei esse tal de Uber), mas sim o subtexto: a
defesa de um modelo de Estado que tem seu fim em si mesmo. Indignação que nasce
não por estar diante de uma rematada bobagem, de uma concepção anacrônica, ou
de uma falácia cristalina; mas da frustração de não poder dizer que o
parlamentar está errado desta vez. Pelo menos, não no mundo real.
Estivéssemos
numa sala de aula, ou num clubinho de debates, esse discurso não resistiria aos
mais triviais princípios da Teoria Geral do Estado: “o objetivo maior do Estado
é a busca do bem comum, os controles sociais devem prezar a eficiência e a
justiça”, coisas assim. Mas as decisões de verdade não acontecem na Academia.
Do lado de cá dos livros, “o sistema trabalha para resolver os problemas do
sistema”.
Não
sei quem vencerá a queda de braço Uber x Táxi, se é que haverá vencedor; mas
sei que, quando o Estado vigente é um Estado que trabalha para si mesmo, que
enxerga o anseio geral por mais liberdade e autonomia como um incômodo, cuja
autoridade é um valor mais importante que o bem comum, quem sai perdendo é a sociedade.
Reclamamos,
com frequência, dos serviços ruins do Estado, da gestão pública perdulária, dos
casos de corrupção. Discutimos, com menos frequência, o quanto os governos deveriam
intervir em nossas vidas. Um novo modelo de Estado não será gerado dentro da
caixa, por políticos viciados em jogar pelas velhas regras, tampouco resultará de
um pensamento travado em falsas dicotomias, como se todas as opções se reduzissem a modelos de laissez faire do século XIX ou ao totalitarismo dos
antigos países socialistas.
Novos
modelos demandam uma forma diferente de pensar. Precisamos entender o
papel ideal do Estado, definir as atribuições que o conduziriam a esse modelo
ideal, e assumir nossas próprias obrigações em relação a todo o resto – porque se
pretendemos aumentar nosso poder, também aumentará nossa responsabilidade.
Só
então poderemos construir um Estado que, abandonando a pretensão de tudo fazer
e se concentrando no que é essencial, resgate seu verdadeiro propósito:
perseguir o bem comum. Que nos ajude a empreender, trabalhar e viver, e que
saiba se afastar quando estivermos, por conta própria, nos virando melhor do
que seria possível sob suas rédeas.
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