terça-feira, 19 de abril de 2016

Por um sentido na vida


E de repente era domingo, mas não um domingo qualquer. Era um dia em que ia acontecer alguma coisa muito importante, que ia ficar pra história, e todo mundo estava falando sobre isso.
E eu, pensando que todos os dias acontecem coisas muito importantes, que qualquer dia pode ser o dia mais importante na vida de alguém, me esforcei pra ver o que tinha de tão diferente nesse domingo.
E foi um domingo de sol, mas mesmo assim muita gente passou o dia na frente da televisão, o que até aí não é tão diferente do que costumam fazer em todos os domingos.
Mas também tinha um monte de gente na rua, como não em todos os domingos. E não era carnaval, nem micareta (acho). Na verdade dava pra separar em dois montes de gente, cada lado torcendo pra uma coisa. E lá em Brasília construíram até um muro pra separar um bando do outro.
E de repente dava pra perceber que o dia era, sim, um tanto diferente.
E o domingo chegava ao fim, e as pessoas se agitavam cada vez mais. Algumas comemoravam, com algazarra e palavrões. Outras se lamentavam, com choro e mais palavrões. Nada diferente do que já vira acontecer em outros domingos, mas desta vez não parecia ser por causa do futebol.
Ah, mas com certeza, se esse domingo foi mesmo um dia assim tão importante, no dia seguinte eu sentirei a diferença.
Mas, quando saí às ruas, não percebi nada. O vendedor de flores ainda estava no sinal da esquina, como na segunda anterior, e na outra antes desta. O morador de rua ainda estava no viaduto, arrastando o mesmo cobertor surrado de sempre, buscando restos nas mesmas latas de lixo.
Mas pare, espere, pense, todas as coisas do mundo não vão mudar assim, de uma hora pra outra. Algumas coisas já devem ter mudado, outras não. É só questão de procurar.
Então procurei, porque o mundo se estende muito além do nosso quintal. No sinal da minha esquina, o vendedor de flores continuava lá. Mas, na cidade de Montes Claros/MG, o prefeito não estava mais na Prefeitura. Havia sido preso por corrupção.
E esse prefeito, no domingo, havia sido citado como exemplo de gestão, naquela coisa que todo mundo estava assistindo na tevê, e em nome dele sua esposa bradou contra a corrupção. E na segunda, ele foi preso como corrupto. É, muita coisa mudou pro prefeito, e pra mulher do prefeito, de domingo pra segunda.
E fiquei sabendo, também, que além da deputada que louvou a virtude do marido preso por corrupção, teve também um deputado que exaltou a ditadura, e homenageou um assassino e torturador. E aí outro deputado, por causa disso, ou por causa de outra coisa, ou por causa disso e também por causa de outras coisas, foi lá e cuspiu no deputado que gosta de torturador e gosta da ditadura.
Ah, e o deputado que cuspiu no deputado que gosta de torturador e gosta da ditadura, apesar de ser homem, gosta de outros homens. Não aquele gostar no sentido fraternal, cristão, mas aquele gostar proibido para menores, que só pode passar na televisão depois da meia noite (na internet pode passar o dia todo!). E parece que para algumas pessoas o fato desse deputado gostar de outros homens é mais importante do que o fato do outro gostar da ditadura e de torturadores, e cuspir nos outros (a tempo, que nojo! Sua mãe não te deu modos, menino?) é mais grave do que exaltar a tortura, o que eu achei estranho pra caramba, mas, poxa, bem que me avisaram que não seria um domingo como outro qualquer.
E de repente comecei a achar que o fato tão importante esperado para o domingo devia ser o arranca rabo desses dois, porque só se falava nisso.
E, no meio do assunto, percebi que mais uma coisa havia mudado: o monte de gente que até domingo falava coisas do tipo “se o Darth Vader é malvado isso não é desculpa pra ninguém ser malvado também”, começou a “aliviar” a apologia à tortura, porque um tal de Stalin também torturou, um tal de Che também matou.
Fiquei sem saber como eles pensam, fiquei em dúvida até se pensam mesmo, se estão tentando me enganar, ou a si próprios. Bem que me avisaram que não seria um domingo como outro qualquer!
E descobri, pra completar, que o povo que passou o dia na frente da tevê ficou horrorizado com “nossos” deputados, que não sabem nem falar, que pensam que o plenário é igreja, que exaltam a ditadura, que trocam xingamentos, empurrões e cusparadas, quando deviam estar ali resolvendo os problemas do país.
E de repente podem ter começado a pensar que “só” trocar de presidente (ah, por isso que o dia era especial, como não lembrei antes?) pode não ser assim tão importante como eles tinham pensado, porque também precisamos trocar de deputados, e tem mais de 500 deputados, e será que precisamos de tantos, e como esse pessoal que nem sabe falar direito virou deputado, e está decidindo a nossa vida em nome do evangelho quadrangular, da BR-429, do aniversário da Ana, minha neta Ana, pela memória de um torturador, ou porque a soberba procede (isso me deu câimbra nos ouvidos) a queda?
E de repente, fiquei aqui pensando que esse domingo pode mesmo ter sido muito importante.




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