quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O Elo Perdido


Nem quando atualizava o blog semanalmente conseguia dar conta sequer de uma mínima fração dos acontecimentos que, por sua efetiva relevância ou bizarra peculiaridade, mereciam mais uns quinze segundos de fama. Agora, com publicações menos que esporádicas, é como se o mundo girasse tão rápido que, quando penso nas notícias de hoje, já é depois de amanhã. Mas ontem aconteceu tanta coisa, que desta vez não resisti a escrever pelo menos umas poucas linhas sobre cada uma delas.
A estrelinha de natal ainda brilhava quando estourou o grande escândalo da milionária lista de mantimentos do avião presidencial. A licitação foi cancelada tão rápido, e tão rápido passamos para outro assunto, que nem rolou tanto sangue entre o pessoal do “o Lula também comprava Nutella”, os revoltados do fundão que bradavam “prendam todos”, e a galerinha que tirava sarro denunciando que a Häagen-Dazs também é do filho do Lula. Estou tão atrasado que só direi isto: coitado do decorativo, mais de quinhentos anos de esbórnia e quando chega a vez dele não pode comprar nem um sorvetinho.
Os outros fatos são muito mais sérios, e não se prestam a piadas. Na verdade, deviam estar em outro texto. Mas vão ficar aqui mesmo.
Dois indivíduos agridem com os próprios pés e punhos, até a morte, um camelô. O motivo? O ambulante interferiu quando eles iriam agredir com os próprios pés e punhos, provavelmente até a morte, um travesti. E porque eles queriam espancar o travesti? Porque o travesti tentou roubar o celular deles, disse um. Porque o travesti reclamou que eles estavam fazendo necessidades no meio da rua, corrige outro. Por nada, eles só odeiam travestis, dizem as faixas. Mas no fim quem morreu foi o ambulante, que não tinha feito nenhuma dessas coisas, nem era travesti. E um dos matadores diz que “não era uma má pessoa” e estava arrependido por ter matado um “cidadão de bem”. Nem ensaiando o discurso de remorso conseguiu esconder que, se existe de fato algum arrependimento, foi só por ter errado o alvo.
Na noite de 31 de dezembro, um alucinado mata doze pessoas, incluindo o próprio filho de oito anos. Antes mesmo dos corpos esfriarem a imprensa divulga uma carta póstuma do louco que é um pot-pourri dos pensamentos profundos dessa gente bronzeada que vocifera contra “tudo isso que está aí”: ódio das mulheres, dos políticos, dos impostos, da corrupção, dos bandidos. Muita raiva dos bandidos, porque ele também era uma boa pessoa, igual o espancador do travesti e do camelô, um “cidadão de bem”. E toca gente a dizer que a culpa é da onda neofascista, e outros a negar; “com certeza” ele já era insano antes.
E para uma meia dúzia ele não podia ter uma arma, para duas dúzias todo mundo na festa deveria ter uma arma (aliás, Westworld é bem legal), e acho que ouvi até um pastor aí dizendo que foi o demônio. E no fim tudo que restou foram corpos empilhados por uma criatura atormentada que odiava a si mesmo mais do que a tudo.
E acredito, de verdade, que por alguns instantes o mundo todo ficou triste, somente triste, e pensando que não vale a pena sentir tanto ódio, e todos nos lembramos juntos de algum belo pensamento budista ou de uma música do John Lennon. Mas foi por tão poucos instantes, que quando me dei conta as pessoas já estavam com raiva de novo. Com tanta raiva que abrem um sorriso quando chegam notícias de mais e mais mortes, claro, desde que os mortos não sejam “cidadãos de bem”.
Acham que estou falando do “acidente” no presídio do Amazonas? Sinto, ainda não cheguei em 2017. Mas se a humanidade continua tão desumana, não me surpreende que o futuro continue a repetir o passado.


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