Uma das séries que assisto a conta gotas é “The Tudors”.
As sinopses usualmente a classificam como “drama histórico”. Remeter a
acontecimentos do século XVI já traz uma grande vantagem, não precisamos nos
preocupar muito com spoilers. Mas se
fosse eu a anunciar a série, diria que é uma história sobre como pessoas sem
limites e incapazes de lidar com frustrações podem fazer estragos memoráveis,
ainda que estejam imbuídos de convicção de que cumprem algo como uma missão
divina.
O personagem principal é o lendário monarca da Inglaterra, Enrique VIII. No começo da história, o Rei suporta um tradicional casamento de
conveniência, ao mesmo tempo em que coleciona amantes e inimigos por toda a
Europa – geralmente nessa ordem, porque ele sabia priorizar. Uma dessas
amantes, Ana Bolena, mesclando seus admiráveis atributos estéticos e o
crescente descontentamento do Rei com o fato da esposa não lhe ter “dado” um
filho varão (incapaz de lidar com frustrações, lembram?), consegue induzi-lo a
cometer a maior das insanidades, um segundo casamento!
Nos dias de hoje, apesar da grande atenção que os
tablóides ainda dispensam à decorativa família real, talvez tudo fosse
relativamente fácil. Mas no século XVI, ah, a sociedade era muito conservadora,
tudo bem o Rei ter doze amantes em cada corte do mapa, mas divórcio, jamais!
Enrique, porém, era criativo, e simplesmente declarou que não estava se
divorciando, mas que seu casamento nunca existira. Ele era o Rei, afinal. Quem
poderia desdizer qualquer coisa que ele dissesse?
Bem, como sua esposa também era Rainha e filha de Rei,
alguns até tentaram. O bispo inglês e o Papa se recusaram a declarar a nulidade
do casamento. Nenhum problema, Enrique separou o país da Igreja Católica,
decapitou o bispo insubordinado, se declarou chefe da Igreja na Inglaterra e
nomeou um novo bispo biônico. Tudo resolvido, certo?
Quem dera! Infelizmente a nova Rainha, depois de cinco
anos de casamento, também não conseguira gerar o desejado varão. Enrique se
convenceu então de que ela o traíra com uma imensa quantidade de homens,
mantendo inclusive uma relação incestuosa com o próprio irmão (UAUU!). Após
algumas prisões e torturas, surgiram as esperadas confissões. Munido de
provas incontestáveis da traição, Enrique mandou cortar a cabeça da Rainha, do
irmão da Rainha, e de mais um monte de gente. Hum, devia colocar também na
minha sinopse que ele tinha uma certa tara por separar cabeças de seus corpos.
Enfim, há quem diga que talvez Ana tenha mesmo traído o
Rei. A moça não passou para a história com a melhor das imagens. Nunca
saberemos toda a verdade, mas parece certo que, tivesse ela passado suas noites
com todos os cavalariços de Whitehall ou ajoelhada em contrição e orações,
teria sido decapitada da mesma maneira.
Antes mesmo da cabeça da suposta atleta sexual rolar
pelas calçadas de Londres, o Rei já teria escolhido sua nova Rainha. Boateiros
maldosos chegam a sustentar que decidira se livrar da antiga esposa para tomar
uma nova antes até de inventar, oops, tomar conhecimento das traições de Ana
Bolena, e teria deliberado previamente todos os passos do “julgamento” da Rainha
Ana. Pessoalmente, acho essa teoria um tanto fantasiosa. Só porque ele se casou
logo depois de mandar decapitar a ex-esposa? Coincidências acontecem. E quem
pode prever ou controlar os caminhos do coração, da política, ou de qualquer
faceta do destino dos homens e das nações?
Parei de assistir quando cortaram a cabeça de Ana Bolena.
Mas a história até esse ponto já me fez perceber que injustiça cometemos
quando, ao celebrarmos conquistas civilizatórias como a separação de poderes, o
devido processo legal, o juiz natural, lembramos de Montesquieu, Kelsen,
Hobbes, e de tantos outros filósofos e juristas, mas esquecemos de pessoas como
Enrique VIII, que dedicaram suas vidas a demonstrar, na prática, por que essas
garantias são tão importantes.
Ah, claro, importantes só para proteger pessoinhas
desprezíveis. Porque nós, cidadãos de bem, jamais cometeríamos um ato tão vil
como adultério incestuoso. Só precisamos nos preocupar em descobrir a hora das
execuções, e então nos divertir com as cabeças rolando pelas calçadas.
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