Há dezessete dias das eleições, tudo soa
como filme repetido. Um partido acusa o outro de corrupção e incompetência,
alguns acusam todos. Outra se faz de desentendida, embora não chegue a dizer
que não tem nada a ver com isso. A cada debate, uma enxurrada de memes. Analistas
se debruçam sobre os discursos dos três principais candidatos, embora não
tenham nada de novo a dizer sobre eles. E passa ao largo da crônica
especializada a questão que mais me intriga: o mísero percentual de 1% das
intenções de voto atribuído ao presidenciável Everaldo, codinome Pastor.
Eu sei, mal começou o texto e vocês já
acham que eu estou de sacanagem. Garanto que não. E para deixar bem clara a
natureza realíssima do meu assombro com o 1% do pastor, resumirei os motivos
que me levam a crer que ele deveria ter uma votação bem mais expressiva.
Li as propostas do candidato e acompanhei suas performances nos debates. Everaldo apresenta um
cardápio de ideias bem definido. Defesa do conceito “tradicional” de família: não
vale homem com homem nem mulher com mulher. Contra a regulamentação de qualquer
droga, além, claro, das muitas que já estão legalizadas. Descriminalização do
aborto, nem se pode discutir. No campo econômico, a solução é simples:
privatizar tudo. Para melhorar a segurança pública, reduzir a idade penal e
liberar o porte de arma. Tudo em defesa da vida e das famílias. Amém.
Por mais que a minha amostragem possa ser
viciada, estimo em bem mais de 1% a quantidade de pessoas que tem a mesma opinião dele a respeito de todos esses temas.
Antes de começarem a precipitar juízos de
valor sobre meu círculo de conhecidos (no qual a esmagadora maioria dos
leitores, ei você, se inclui), esclareço que essa estimativa inclui pessoas que
não conheço pessoalmente, “anônimos” da Internet, contatos de conhecidos que
comentam e compartilham coisas nas redes sociais. E os convido a refletir, se
percebem, assim como eu, que há muita gente comprando esse barulho, pregando os
mesmos salmos do pastor. E talvez, após essa reflexão, entendam meu espanto: se
tantos pensam (ok, pensar não é o melhor verbo aqui, mas nenhum outro me ocorreu) como Everaldo, por que tão poucos afirmam que votarão nele?
A primeira hipótese que testei foi a de
que os eleitores ainda não conhecessem o candidato. Mas a abandonei ao lembrar
que antes do início da campanha o pastor alcançava índices superiores nas
pesquisas, entre 3% e 5%. Portanto, tornar-se mais conhecido fez com que ele
perdesse votos. Que paradoxo!
Com o horizonte cada vez mais nebuloso,
parti para a segunda hipótese: outros candidatos que defendem as mesmas
bandeiras, com mais eficiência, estão atacando seu nicho de mercado. Ledo
engano. Algumas das propostas até encontram eco nos discursos dos oponentes, em
especial as que envolvem os temas mais caros aos dogmas religiosos. Mas o
pacote completo, com ênfase e convicção? Só mesmo o pastor. Ah, e Eymael, o
democrata cristão, o homem que enfrentou os fariseus e não deixou tirarem o
nome de Deus do preâmbulo da Constituição. Mas não encontramos nenhum voto com
ele, para que pudéssemos acusá-lo de ter roubado do pastor. Assim, o mistério
continua.
Como o mero exercício da reflexão
mostrou-se infrutífero, resolvi ir a campo. A terceira hipótese seria
construída empiricamente. A fortuna me colocou frente a frente não com apenas
um, mas com dois indivíduos que eu supunha que compartilhavam do ideário de
Everaldo. Fiz um rápido teste, submetendo ao seu escrutínio as propostas do
pastor. Casamento gay? Jamais! Privatizar? Genial! Reduzir a idade penal?
Passou da hora!
Esgotei os temas, com o resultado que
previra: 100% de concordância. Qual não foi minha surpresa com a reação dos
dois quando anunciei: considerando suas respostas, trago boas novas. Há um
candidato perfeito para vocês: o pastor Everaldo!
Pois é, não me agradeceram. Sequer
reconheceram o esforço da minha pesquisa. Encararam como piada! Aumentou minha
confusão. Qual a graça? Eu bem que gostaria se houvesse pelo menos um candidato
com que eu concordasse em tudo. E vocês tem. Por que não votariam nele?
“Porque ele não tem chance de vencer”,
responderam. Assim não terá mesmo, nem vocês, que concordaram com todas as propostas, vão votar nele! Argumentei que poucos votos transmitirão a mensagem de que as ideias de Everaldo não tem apoio da sociedade. Seguiram-se algumas respostas evasivas,
desqualificando o pastor sem qualquer base lógica, adjetivando-o de “folclórico”
e outras coisas mais. Continuei sem entender os reais motivos da rejeição ao candidato.
Mesmo
com a experiência frustrada, não desisti de buscar a resposta. Se ela não pode
ser alcançada pela lógica, restam a abstração e a fantasia. Ou, como diriam os
super-leitores (quem não entendeu, tenha um filho, por favor, e volte daqui a
dois ou três anos), a resposta está num livro! Ou num filme, se tiverem
preguiça de ler.
Dorian
Gray (na foto, do filme de 2009, interpretado por Ben Barnes) é um personagem
de Oscar Wilde. No romance, ambientado na Inglaterra da era vitoriana, Dorian,
ao contemplar-se jovem e belo numa pintura, deseja jamais envelhecer. Diz que
daria a própria alma para que, ao invés de agir sobre ele e deixar o retrato
incólume, o tempo agisse sobre o retrato. E assim acontece. O rosto na pintura
vai se tornando velho e feio, refletindo não apenas a passagem do tempo, mas
também os pecados de Dorian. Que seguia jovem, mas experimentava crescente
repulsa pela sua imagem real.
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