quinta-feira, 10 de abril de 2014

O meu é maior que o seu!


Desde que um punhado de franceses resolveu marcar posição se sentando em lados opostos da Assembleia Nacional o mundo assiste ao embate entre duas linhas de pensamento supostamente antagônicas, a “direita” e a “esquerda”.
Parece evidente que os problemas sociais são por demais complexos e distintos para que possam ser encarados com base em tal reducionismo. Ao contrário, o mais lógico seria que, para cada caso concreto, as decisões políticas se pautassem por critérios racionais, sem pré-julgamentos ou vieses ideológicos. Em outras palavras, problemas diferentes devem ser enfrentados de modo diferente, e é praticamente impossível que todas as soluções possam ser encontradas olhando só para um lado da moeda.
Por que, então, essa polarização persiste? Por que políticos e eleitores seguem se declarando de “esquerda” ou de “direita”, ainda que na prática vivam no “meio”? Arrisco apontar alguns motivos:
  • Temos preguiça de pensar. Encaixar os processos de decisão em “modelos” pré-fabricados, que podemos escolher por imitação, é bem mais simples do que formar conjuntos próprios de valores, e analisar todas as inúmeras questões que envolvem a vida em sociedade com a nossa própria cabeça.
  • Gostamos de pertencer a grupos. Se não assumimos um lado, nos sentimos sem identidade.
  • Queremos acreditar que somos melhores do que realmente somos e, principalmente, que somos melhores que os outros. A partir do momento em que adotamos uma ideologia e nos juntamos a um grupo, que, claro, consideramos moral e intelectualmente superior ao “inimigo”, passamos a nos achar melhores do que todos os pobres coitados que pensam diferente, que não enxergam a verdade como nós.
  • É mais fácil defender ideias por oposição do que pelos seus méritos intrínsecos. Quando polarizamos qualquer discussão, temos terreno fértil para impor falsas dicotomias. Talvez este seja o principal motivo pelo qual os políticos adoram declarar posições ideológicas, ainda que na prática se afastem muito do discurso que fazem quando em campanha.

Nota do tradutor: Falsa dicotomia é uma falacia lógica que descreve uma situação em que dois pontos de vista alternativos, geralmente opostos, são colocados como sendo as únicas opções, quando na realidade existem outras opções que não foram consideradas. Essa falácia é usada para defender pontos de vista em geral, ela muitas vezes é usada em uma comparação em que uma das opções é completamente descartada pelo seu proponente, restando apenas a que lhe interessa.” (Fonte: Wikipedia, claro!)

A insistência nessa polarização demonstra que, do ponto de vista político, somos ainda muito imaturos. Seguimos presos às soluções fáceis, ao binômio herói-vilão. Recusamo-nos a reconhecer o óbvio: que entre os deuses e os demônios estamos nós, imperfeitos e cinzentos seres humanos.
Claro que tamanha tolice não pode passar sem castigo. Não vamos nem apelar para as trilhas de corpos deixadas por um lado e pelo outro, ou para o fato de que o mundo viveu por uns trinta anos com medo de que, qualquer dia, russos ou norte-americanos apertassem um botão errado e nos mandassem todos para o espaço. Afinal, o muro de Berlim caiu há mais de vinte anos, embora pareça ter gente que ainda não saiba disso e continue morrendo de medo da “ameaça vermelha”. Ficaremos fora dessa anacrônica bagunça, portanto. Pretendemos demonstrar somente que debater ideias, dispensando bandeiras, tende a ser mais produtivo do que disputar quedas de braço.
O nosso Brasil, por exemplo, tem uma série de questões que poderiam ser facilmente resolvidas, se houvesse um mínimo de vontade política. Em alguns casos, a solução parece estar à “direita”, em outros, à “esquerda”. Há temas, como o Estado laico, o respeito às leis e aos direitos humanos, que são imperativos para os dois lados, e mesmo nestes não conseguimos avançar. Mas o que direita e esquerda tem a ver com isso? Em que a dicotomia nos atrapalha?
Bem, é simples constatar o potencial destrutivo de um “debate” conduzido com base em dogmas ideológicos. Já discorremos, em artigo anterior, sobre as distorções do sistema tributário brasileiro. Naquela ocasião o comparamos com o modelo dos Estados Unidos, que certamente não tem nada de comunista.
Retomando aquela análise, vamos admitir que uma proposta razoável de reforma tributária contemplasse o fim da regressividade. Assim, uma medida conveniente seria reduzir a carga de impostos incidentes sobre o consumo, desonerando o setor produtivo e estimulando o empreendedorismo.
Pausa para a claque: Ééééééé´!! Isto mesmo! Viva a livre iniciativa!! Chupa Che Guevara! EI! Cuba! VTNC!!!!
Prosseguindo: uma outra providência lógica, ainda com o objetivo de eliminar a regressividade e nos aproximar do modelo dos países desenvolvidos, seria alterar o foco da tributação para impostos sobre a renda, sobre a transmissão de heranças, e sobre a propriedade de modo geral. Em especial, majorar os tributos incidentes sobre os capitais especulativos e a propriedade improdutiva.
Pausa para a claque: EIII que isso??? Vai mexer no que é meu??? Comuniiismoooooooo!!!!!!!!!
Pronto, está formado o cenário para que “grandes proprietários” saiam dos seus latifúndios de 90 m2 e tomem as ruas (ok, as redes sociais) morrendo de medo do MST, do Che, do Fidel, e até do Dalai Lama. Eles não sabem, nem querem saber, que naquele país pintado de vermelho que fica entre o México e o Canadá os impostos sobre a herança tem alíquotas de até 50%. Que isso estimula o trabalho e a produção de riqueza, em vez da perpetuação de oligarquias.
Pausa para a claque: Não, pode parar com esse papinho de comunista! Ninguém vai tomar metade dos meus bens! Ainda que eu não tenha nada, vai que um dia eu consigo comprar um apartamento? Daí se eu morrer, o governo vai tomar metade? Ah não! Por que você não muda pra Coréia do Norte, FDP?
Guerra decretada, e continuamos empacados. E os grandes proprietários de verdade, aqueles para os quais o Brasil sempre funcionou, seguem dando risada enquanto assistem ao cidadão comum se debatendo, demonizando ora o PR do B, ora o PMT do C, acreditando piamente que há grandes diferenças entre um e outro. Isso quando não estamos lutando contra inimigos imaginários, esquizofrenia que já consumiu umas boas décadas da nossa história recente.
Mas então, o que fazer? Existe mundo fora da “esquerda” e da “direita”? É possível realmente que as pessoas pensem "fora da caixa"?
Sim, é possível. Embora hoje, num país que sofre uma epidemia de analfabetismo funcional, esteja distante da nossa realidade. Mas podemos tentar pelo menos definir quais são os limites reais dessa caixa. Se for para brincar de escolher lados, vamos brincar direito. Quais são os lados, afinal? De que lado eu devo estar, e quem será que está do meu lado? Se é que tem alguém do meu lado?
Será este o tema do próximo texto, que concluirá a pequena série direita-esquerda.






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