Vamos imaginar que o Brasil decida “zerar” o
Congresso e instalar uma novíssima Assembleia Nacional, a exemplo do que
ocorreu na Revolução Francesa (sem as guilhotinas, por favor). O objetivo da
Assembleia é simples: encontrar caminhos para resolver os inúmeros problemas do
nosso país.
Cientes dos perigos da polarização, e querendo evitar cabeças cortadas atrapalhando a passagem, os organizadores da Assembleia optam
por não dividir o plenário em lados opostos, mas dispô-lo em círculo. Posicionam
junto ao centro, abertos a partir do palco destinado para os discursos,
estofados totalmente brancos, que vão ganhando coloração à medida que se
aproximam das extremidades, que ficam tomadas por assentos vermelhos.
Para definir os lugares destinados a cada representante,
adotam a seguinte regra: aqueles que são contra reformas profundas, contra decisões que impactem de modo significativo a
estrutura social e política preexistente, devem ocupar os assentos brancos. Para
os que defendem a necessidade de mudanças radicais, ficam
reservados os assentos vermelhos. Os
demais, naturalmente, vão sendo distribuídos pelos demais assentos de matizes
intermediários conforme o seu grau de conservadorismo ou reformismo.
Formado o cenário, vamos a um trivial exercício de
lógica, temperado por um breve exemplo. Sabemos que atingir o crânio de um ser
humano saudável com uma bolinha de papel não provoca ferimentos. Aliás, devemos
agradecer a um de nossos mais eminentes políticos por esse conhecimento, ele
que ofereceu seu próprio corpo à ciência, submetendo-se a uma extensa bateria de exames que dirimiram qualquer dúvida que pudesse haver sobre a inofensividade das bolinhas de papel.
Ora, uma vez que sabemos disso, é uma grande
estupidez, se pretendemos causar ferimentos a uma pessoa, alvejá-la com bolinhas
de papel. Óbvio que devemos usar outro tipo de projétil, mais pesado e
contundente.
Do mesmo modo, se entendemos que o Brasil tem uma
série de problemas, beiraria a insanidade se, caso convocados para semelhante
Assembleia, optássemos pelos assentos brancos. Como poderemos almejar mudanças,
se continuarmos fazendo as mesmas coisas?
Vamos estender um pouco a alegoria e pensar nos
nossos políticos atuais. Há certo partido que ocupa a Chefia do Poder Executivo
e grande parte das cadeiras do Congresso há mais de uma década, e tem como
símbolo uma estrela vermelha. Dizem por aí que eles são de esquerda.
Mas, vejamos: em todo esse tempo de governo, houve
mudanças relevantes no Brasil? Claro que podemos encontrar algumas melhorias, avanços, mas só até certo ponto. Geralmente até o limite em que começam a ser ameaçados "valores" tradicionais da nossa sociedade. Não por acaso, nos últimos vinte anos, a pauta de debates parece a mesma: ainda falamos de reforma política, direitos civis, reforma
tributária, reforma agrária, saúde, educação, desigualdade
social, segurança pública. Enquanto isso, a maioria dos “nossos” representantes
vive de braços dados com latifundiários, fundamentalistas religiosos,
empreiteiros, usineiros, banqueiros e outras “vítimas do sistema”. Em resumo,
com o pessoal que tem todos os motivos do mundo para desejar uma Assembleia
pintada de branco, porque para eles tudo continua muito bem, obrigado.
Agora,
vamos esquecer aqueles velhos conceitos que nasceram lá na França e pensar:
será que o pessoal da estrelinha rubra no peito está mesmo ocupando os assentos
vermelhos? E todos os demais partidos, quais deles estão realmente lutando por
um país mais justo e solidário, como prega a nossa Constituição, e quais estão
apenas brigando um contra o outro, esperando sua vez de sentar na cadeira mais
disputada da sala?
A
verdade é que, antes de pensar se nós “somos” de algum lado, e procurar quem
diz que está do mesmo lado, precisamos saber o que queremos. Construir nossos
próprios valores e ideias. Depois, descobrir quem são os cidadãos e homens
públicos que não só afirmam pensar como nós, mas também tem atuado para
transformar as ideias em realidade. Aqueles que se sentariam perto de nós na
Assembleia. Aqueles que nos ajudariam a pensar, a litigar, a conciliar, e a
construir, quem sabe, um amanhã diferente.
O
caminho da mudança é tortuoso, e geralmente percorrido a passos curtos. Mas
pode ser vencido se, para começar, visualizarmos com clareza a trilha que
queremos percorrer. Uma trilha que tem muito mais de dois caminhos.
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